Olhar de Cinema: Daniel

Dessas pequenas experiências inusitadas, aparece no festival esse Daniel, filme singelo e agradável que permanece com o espectador não somente porque não se “encerra” ao final (nos moldes clássicos), mas porque faz isso de modo nada hermético e intencionalmente misterioso nos caminhos que vai seguir a partir de certo ponto da trama. Seria, em essência, uma história de formação, personagem perdendo aos poucos a inocência infantil, desabrochando nas pequenas descobertas capazes de ampliar mundos.

A cineasta francesa Marine Atlan, nesse seu primeiro longa-metragem, precisa de apenas uma hora para estabelecer um universo muito palpável ao redor do protagonista de 10 anos de idade – o filme todo se passa em um dia na escola –, sem precisar se esforçar para pontuar tal contexto: as crianças entregues às brincadeiras, os ensaios de uma peça musical de teatro, o professor tentando dar conta da pequena bagunça boa. O início do filme assemelha-se a um registro documental que logo irá expor suas marcas narrativas construídas para levar o filme sempre para lugares inusitados.

No maior desses desvios de rota, Daniel se depara com uma cena que lhe tira do eixo: a coleguinha que troca de roupa numa sala reservada. Está dado o abalo emocional capaz de modificar a percepção de mundo do pequeno. A despeito do espanto que isso possa causar na criança e do pouco tempo de filme, Atlan prefere dedicar atenção especial a este momento, principalmente quando os dois se confrontam diante do rompimento da barreira moral que se deu ali. Os closes no rosto e no olhar dos personagens, especialmente nos dois envolvidos no compartilhamento de momento tão único e proibido para um deles, são escolhas narrativas que passam a tensionar a relação entre ambos dali para frente. A dupla de atores mirins Théo Polgar e Madeleine Follacci é um achado precioso.

O sentimento de estranheza que se instala entre eles só faz paralelo com a própria ambientação que Atlan cria naquele microcosmo tão localizado no tempo e espaço. As crianças brincam, dançam tango e ainda treinam para uma possível invasão terrorista no colégio no pouco tempo de filme. Além de trafegar entre o íntimo dos personagens e aquilo que acontece no seu entorno, Daniel é uma peça rara na maneira como tece uma narrativa agradável e sutil que é ao mesmo tempo catalisadora de uma agitação que apenas começa e se instaura ali. Não há fecho possível porque aquilo que desperta no âmago dos personagens é apenas um indício de amadurecimento que está apenas começando.

Daniel (Daniel Fait Face, França, 2019)
Direção: Marine Atlan
Roteiro: Marine Atlan e Anne Brouillet

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