Um Animal Amarelo

Cicatrizes abertas da colonização*

Um Animal Amarelo começa com a voz de uma personagem (Izabél Zuaa) – que irá se materializar mais à frente na narrativa – a comentar o próprio filme que estamos vendo; este é creditado ao cineasta que será o protagonista desta trama aqui. A primeira imagem é de uma praia no continente africano com pessoas andando e alguns barcos abandonados na areia, enquanto abutres sobrevoam a paisagem.

Assim, o filme nos resgata o passado colonizador e escravagista que faz parte da formação do Brasil, do seu povo, e que marcará a trajetória torta dos tipos excêntricos e contraditórios em si mesmos que nos serão apresentados no decorrer deste longa recheado de ideias mirabolantes e maravilhosas.

Mas antes de chegar de fato à história do cineasta em crise, o filme faz uma digressão para contar a história de seu avô (vivido por Herson Capri), um velho explorador de terras, obcecado pela riqueza, mas também experimentando a paixão por um homem mais novo. Veremos também a infância do futuro cineasta, pré-adolescente vivendo as primeiras descobertas (e desilusões) da juventude, já ali acostumado a perder o que parecia estar conquistando.

Um Animal Amarelo é este filme inventivo, tropical pouco festivo, antes autocrítico e questionador, filme de inclinação fabular que é marca carimbada do cinema feito pelo carioca Felipe Bragança. Seus filmes trafegam pelo delírio, pelas urgências da realidade latente e pela fabulação que ora que se apresenta como forma de elevação para os personagens, ora como potencializadora das mazelas e crueldades de uma cidade (o Rio de Janeiro da violência crescente) ou de um país, o Brasil selvagem e glorioso embalado por alegrias e tristezas.

É nessa toada de contradições (a doçura e a crueldade perfazendo um só povo, como diz Darcy Ribeiro) que encontramos o Fernando adulto (Higor Campagnaro) – que não significa mesmo ser homem maduro – às voltas com suas tentativas de fazer cinema, de compreender um país e de buscar suas raízes ancestrais sem nem ao menos sair de casa.

Do lar burguês carregado de privilégios (mais de cor do que necessariamente de dinheiro), restam os sonhos fabulares de contar histórias por meios pouco convencionais, mas ainda assim reveladores de uma identidade nacional, seja ela complexa como for.

O próprio umbigo

Um Animal Amarelo é, portanto, uma metalinguagem delirante em que seu diretor põe a cara a tapa, mas também não se furta em apontar caminhos para que seja possível sair da ignorância. Uma delas é fazer seu protagonista (seu alterego de outros tempos?) cruzar o oceano e aportar em terras africanas, ali pelo Moçambique, de onde saíram tantos africanos a serem escravizados no Brasil.

Ali ele até mesmo ganha outro nome, Muzumgo (que significa pirata pálido), e sua trajetória será não apenas de encontros, a busca pelas raízes ancestrais, mas também feita para se perder – na paisagem e si mesmo, naquilo que configura a formação de alguém que nunca deixa de estar em constante transformação e nos muitos papeis que ele irá desempenhar nessa travessia. Portugal será passagem também importante, onde a exploração das riquezas é capítulo fundamental para se entender os passos históricos para a opressão.

Um Animal Amarelo, por tudo isso e muitos outros detalhes, enredos rocambolescos e contornos narrativos imprevisíveis, é esse emaranhado de saídas e proposições cênicas que jogam o espectador numa espiral de acontecimentos erráticos. Os personagens se movem pela busca, mas também pela necessidade de realização, algo como uma forma de reparação histórica, pagando (quase) na mesma moeda, gesto que a todo instante dialoga com o passado e com as raízes da formação brasileira.

Há de fato um excesso de ideias inventivas e mirabolantes no filme, algumas mais certeiras que outras, muitas delas atrevidas, sarcásticas e galhofeiras, e o filme quase se perde nelas todas. Isso porque a narrativa move-se como se as surpresas espreitassem a cada mudança de cena, a cada atitude tomada pelos personagens. Se por um lado isso traz um frescor interessante ao longa, ele também se desgasta por uma demasia de sacadas que se querem geniais e significativas de muitas ideias ali propostas.

De qualquer forma, sendo esse corpo estranho na produção contemporânea brasileira, acercado de uma veia autoral que se costura muito bem com os filmes anteriores de Bragança e no seu pensamento particular de cinema, Um Animal Amarelo escava raízes da formação de um povo, de modo fabular e febril, como se um fantasma ancestral observasse tudo com curiosidade para saber aonde tudo isso vai dar e o que os podemos fazer a partir daqui.

Um Animal Amarelo (Brasil/Portugal, 2020)
Direção: Felipe Bragança
Roteiro: Felipe Bragança e João Nicolau

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 29/08/2021)

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