Parasita

Assuntos de família e sociedade*

Ano passado, Assunto de Família, de Hirokazu Kore-eda, venceu a Palma de Ouro em Cannes ao colocar em questão a noção de família e revelando um fosso de pobreza e desfavorecimento de classes no Japão contemporâneo. Este ano, o mesmo prêmio foi para um filme que trabalha temas similares, dessa vez colocando em confronto classes sociais distintas, mas com o mesmo efeito de discutir as mazelas sociais de países ricos e economicamente potentes na Ásia.

Parasita é esta obra, do sulcoreano Bong Joon-ho, estreia desse fim de semana no Brasil e que tem tudo para ser um dos grandes filmes do ano. É, sobretudo, uma história primorosamente bem contada e construída, traço da maestria que o cineasta já tinha provado dominar em filmes como Memórias de um Assassino, Mother – A Busca pela Verdade e O Hospedeiro, pontos altos de sua carreira.

Mas agora, Bong Joon-ho alcança um nível a mais de discussão social, para além da concepção de família que sempre esteve presente, de alguma forma, em seus filmes. Em Parasita, a família Kim vive na periferia de Seul, pobres e com sub-empregos que não lhes permitem nenhum tipo de vida digna; por outro lado, os Park têm uma bela mansão hi-tech num bairro nobre da cidade. Os dois clãs irão se cruzar de forma inusitada.

Primeiro, o jovem filho da família Kim passa a ser o professor de inglês da jovem filha da outra família. A partir disso, os Kim bolam um plano para, um a um, serem contratados pelos Park: a pai passa a ser motorista, a mãe torna-se a doméstica e a filha adolescente finge-se de tutora artística para ensinar ao pequeno filho dos Park a desenvolver um precoce talento pela pintura.

O detalhe é que os Park não sabem que todos eles fazem parte de uma mesma família. No fundo, a entrada do jovem Kim na casa inicia um plano para afastar os funcionários de confiança dos Park a partir de armações e artimanhas que não possuem nada de éticas e transparentes. Eles conquistam o posto de trabalho na garra, e na trapaça também. É como se respondessem a uma lei de sobrevivência onde o fim justifica os meios.

Mescla de gêneros

Ao domínio exemplar que Bong tem de encenação e de um ritmo veloz que não deixa o espectador largar a trama do filme, soma-se também a mistura de gêneros que ele faz com precisão, sem parecer uma mistura desordenada de registros. Parasita é ao mesmo tempo cômico, farsesco, ridículo e trágico, para além da carga de discussão social que está no centro dessa trama.

Curiosamente, o filme foge um tanto de certo registro de realismo social cru – como seria esperado nesse tipo de história – para apostar muito mais no absurdo de certas situações. Ora, o roteiro do filme precisa que a patroa rica seja um tanto estúpida o suficiente para cair em todas as armações que os Kim planejam para afastar os fiéis empregados da casa.

O filme, portanto, lança mão dessa comédia de absurdos que tem algo de muito caricato e farsesco, mas conduzido com precisão pelo diretor. É como uma piada de humor negro em que temos consciência do erro de estarmos rindo daquilo, mas que é por demais irresistível.

Ao mesmo tempo, Bong sabe muito bem a hora de nos dar uma banho de realidade, e quando isso acontece o filme é duro e não faz concessões a seus personagens. Há uma sequência na segunda metade do filme, quando a coisa toda desanda, que é um desbunde de tão implacável e ao mesmo tempo tão hilária na sua concepção impressionantemente mista de humor e tragédia. É quando o fosso da desigualdade de classes se abre para uma realidade que está inserida no contexto de um país rico como a Coreia do Sul, mas que bem poderia ser no Brasil.

Por cima, por baixo

Certamente uma das sugestões visuais mais incríveis do filme esteja na dualidade entre cima/baixo que o filme faz a todo o instante. A ideia de classes de gente hierarquicamente sobrepostas em suas posições sociais é traduzida no filme por um jogo muito claro entre aquilo que está por cima e o que está por baixo – a começar pela condição financeira dos personagens.

Mas o filme consegue traduzir isso de modo visual. A primeira cena do filme, por exemplo, revela a casa bagunçada dos Kim que parece estar num subsolo – a janela que dá para o exterior está no nível da rua, como se eles morasse mais abaixo do chão. Por sua vez, o acesso aos cômodos principais da casa dos Park se dá pela subida de uma escada.

Portanto, no decorrer do longa, Bong vai brincar muito com essas dualidades: subir/descer, andar de cima/andar de baixo; e claro, porão e despensa vão revelar mais do que espaços de subalternidades.

O filme consegue ainda ir mais fundo na discussão das mazelas sociais a partir do momento em que uma família desfavorecida vai se confrontar com outra em situação ainda mais degradante, e isso não significa comunhão nem ajuda mútua. Os personagens de Parasita possuem um anseio de ascensão social e vão lutar para manter o posto que “conquistaram” até o fim. O filme vai sustentar esse ímpeto com um fôlego impressionante que só termina mesmo na cena final. E o poço é sempre muito fundo.

Parasita (Gisaengchung, Coreia do Sul, 2019)
Direção: Bong Joon-ho
Roteiro: Jim Won-han

* Publicado originalmente no Jornal A Tarde (edição de 10/11/2019)

 

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