Olhar de Cinema: Um Verão Incomum

Longa mais recente do diretor palestino Kamal Aljafari, cineasta que recebe retrospectiva nessa edição do Olhar de Cinema, Um Verão Incomum é um filme de arquivo dos mais interessantes e rigorosos na sua construção de cena. É também um filme de pretexto, desses que partem de um ponto muito específico e vai, aos poucos, revelando outras camadas e intencionalidades. Tudo começa com a câmera de vigilância que o pai do cineasta instalou para registrar a esquina da rua onde seu carro fica estacionado, depois de sucessivas vezes em que os vidros do carro amanheceram quebrados.

Como demanda clássica do filme de found footage, as imagens foram gravadas em 2006, mas só após a morte do pai do diretor, em 2015, que Kamal descobriu as fitas e com elas compôs esse painel de vida que segue – mais do que um exercício de descoberta sobre quem é o responsável pelo vidros quebrados. Um Verão Incomum é feito, portanto, a partir de um mesmo enquadramento, um padrão de imagem que registra o mesmo pedaço de rua do início ao fim da projeção. Mas essa câmera que mira, estática, para o mesmo lugar, é o que vai possibilitar que o diretor enxergue coisas muito mais particulares dentro da imagem (cabem muitas coisas dentro de uma imagem, já nos ensinou Antonioni).

A partir de um gesto de manipulação da imagem (cortes e zoom, para ficar no mais comum), da temporalidade (as imagens são vistas ligeiramente aceleradas, quando não em slow motion a depender da necessidade do diretor em comentar algo) e da dimensão sonora (creio que esta foi criada completamente de modo ficcional posteriormente), o filme cria um microcosmo que é mais do que a mera soma das partes ou das pessoas que tomam parte da imagem.

O diretor intervém com letreiros entre os cortes das cenas trazendo informações muito específicas sobre pessoas e elementos que aparecem na tela e isso reforça o domínio que ele busca exercer sobre aquele material. Ou antes, acentua uma operação criativa a que ele se dedica exercitar sem macular as imagens porque é dali que florescem muitas outras coisas que pertencem ao acaso, dada a natureza do material: pessoas e objetos que entram e saem do quadro numa via pública.

Mais do que um filme de família, microcosmo muito comum nesse tipo de obra feita a partir de arquivos pessoais, Um Verão Incomum é um filme de vizinhança. Kamal radiografa e registra os muitos rostos comuns que andam e vivem por aquelas bandas, inclusive os da sua família, mas estes últimos não são necessariamente figuras centrais. Eles coexistem com os demais sujeitos na medida em que compartilham um espaço comum – e que nem sempre é de via pacífica.

Para quem filmou, de muitas formas, a noção de casa e de lar (estrutura física e emocional) em processo de desfacelamento nos seus filmes anteriores, dentro do contexto político de opressão sobre o povo palestino e a negação dos seus espaços de vivência, é muito curioso que um local público comum e mesmo banal como aquela esquina acabe se tornando ponto de intrincamento de um coletivo que o filme quase que despropositalmente constrói. Em determinado frame perto do fim do filme, diversos corpos de quem já vimos passar pela tela são colados e rearranjados dentro de um mesmo quadro como se fosse possível àquelas figuras coexistirem num mesmo lugar. Borrados pela textura da imagem antiga, eles são como borrões de algo que fica daquilo que Aljafari guarda e reconhece também como familiar. O filme termina com letreiros que apresentam histórias soltas e vislumbres de acontecimentos distintos que, se reais ou não, evidenciam resquícios de memória que só podem ser acessadas porque elas estão incorporadas no espaço, eternizado no filme, e no tempo, aquele verão nada comum na sua banalidade.

Um Verão Incomum (An Unusual Summer, Palestina/Alemanha, 2020)
Direção: Kamal Aljafari
Roteiro: Kamal Aljafari

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