Narciso em Férias

Sem lenço, nem documento*

Em dezembro de 1968, Caetano Veloso é preso, juntamente com Gilberto Gil, pelo regime militar brasileiro; passa alguns dias na solitária e depois vai para uma cela comum. O motivo de sua prisão ele, até então, desconhece, algo que só vai se esclarecer no interrogatório a que foi submetido muitos dias após a prisão.

Narciso em Férias, longa-metragem dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, é o relato em primeira pessoa dos dias de encarceramento do cantor e compositor baiano. O filme teve estreia mundial no último Festival de Veneza e atualmente está disponível no catálogo do Globoplay para assinantes.

É também um filme que possui escolhas estéticas e narrativas muito consistentes e seguras. À frente de um muro de concreto, de cor neutra, Caetano senta-se numa cadeira e conta para a câmera, em detalhes, desde o dia da prisão, o cotidiano do cárcere até a posterior soltura. Narciso em Férias é um filme seco, direto, sem subterfúgios ou excessos. Mal o filme começa e Caetano já está falando sobre a manhã fatídica em que foi levado pelos militares.

A câmera do filme parece hipnotizada – o espectador também – por aquele homem e seu relato, não o perde de vista uma única vez, ora perto, por vezes distante ou em leves movimentos de câmera que buscam captar a intensidade das falas e das lembranças – a fotografia do filme é assinada por Fernando Young. Narciso em Férias entende muito bem a força do relato, ainda mais esse tão vívido e cru feito por um Caetano muito à vontade e disponível.

Renato Terra e Ricardo Calil já haviam dirigido juntos o festivo documentário Uma Noite em 67, sobre uma edição histórica do Festival de Música Popular Brasileira em que participaram Caetano, Gil, Chico Buarque e uma turma estrondosa da MPB. O tom agora muda e os diretores assumem uma posição mais crua, em muito sentidos lembrando o mesmo tipo de estratégia e formato que Eduardo Coutinho empregava em seus filmes.

Nesse sentido, Narciso em Férias está menos preocupado com a constituição histórica e contextual dos fatos – muito embora as falas de Caetano também apontem para isso e dimensionam o contexto da época – e mais preocupado com a relação que se dá entre a câmera e o entrevistado, sua narrativa e reações ao que está sendo revelado.

A imagem no espelho

O título do longa remete ao capítulo da autobiografia que Caetano lançou em 1997, intitulado Verdade Tropical, em que ele relata o mesmo período de encarceramento. O “narciso em férias”, por sua vez, faz referência à obra Este Lado do Paraíso, do escritor norte-americano F. Scott Fitzgerald. Caetano confessa como durante todo o período da prisão não conseguia se olhar no espelho.

É essa imagem – revelada, em alguma medida, em uma foto rara feita na prisão, parte dos arquivos secretos mantidos pela Ditadura Militar e descoberta recentemente – e essa memória dolorosa, mas vívida, que Caetano confronta no filme com muita lucidez e perspicácia.

Ele conta, por exemplo, sobre o dia em que foi posto para fora da cela e o soldado ordenou que ele seguisse andando, sob a mira de uma arma. Caetano pensou que ia ser morto ali mesmo, mas na verdade eles o estavam levando para cortar o cabelo, uma juba enorme. A foto do cartaz do filme mostra justamente o pós-corte, o que indicava que ele não seria morto e que a liberdade estava próxima.

Mas não foi necessariamente fácil. Caetano vai descobrir que sua prisão se deu por conta de uma informação divulgada pelo radialista Randal Juliano, segundo o qual Caetano havia cantado e tocado o hino nacional em ritmo de tropicália durante um de seus shows na boate Sucata. Além disso, havia brincado com a bandeira nacional, sendo acusado então de denegrir os símbolos pátrios.

No filme, o próprio Caetano lê o relatório feito pelos militares que descrevem o interrogatório e a defesa do cantor, negando aquelas acusações. É um momento que consegue ser engraçado e ao mesmo tempo tenso pela própria natureza do documento oficial e pelo absurdo das acusações – embora o cantor confesse saber que os motivos não foram apenas aqueles. Tudo isso faz lembrar o filme Retratos de Identificação, de Anita Leandro, em que os documentos oficias feitos por militares, também em um caso de prisão, ganham centralidade no filme.

Lugar da memória

Narciso em Férias certamente não possui a mesma elaboração narrativa que Retratos de Identificação, mas é justamente na sua economia cênica que reside seu maior trunfo: as atenções se voltam apenas para as falas e emoções de Caetano de uma forma muito verdadeira e potencializada.

Caetano não segura a emoção quando conta sobre a ajuda que teve de um sargento da prisão, também baiano, que de alguma forma o ajudou em alguns momentos – permitiu que ele recebesse a visita de sua então esposa Dedé, dentro de sua própria cela. Caetano assume o remorso de ter esquecido o nome do sargento. E a câmera do filme é sagaz em captar e tentar traduzir a mistura de sensações desse momento, sabendo respeitar o entrevistado.

A canção Terra, que ele comporia mais tarde, foi inspirada nos dias de cárcere. “Quando eu me encontrava preso / na cela de uma cadeia / foi que eu vi pela primeira vez / as tais fotografias / em que apareces inteira / porém lá não estavas nua / e sim, coberta de nuvens”, diz a canção.

Ele se refere às primeiras fotos da Terra tiradas do espaço, imagens vistas numa edição da revista Manchete que lhe caiu nas mãos na prisão. Lá ele compôs também Irene, onde lembra o sorriso da irmã mais nova. A música se torna forma de reprocessar o trauma e de não esquecer de lembrar as dores, assim como Narciso em Férias é um confronto sem medo e pulsante dessa memória. A memória (quase) esquecida de um país.

Narciso em Férias (Brasil, 2020)
Direção: Renato Terra e Ricardo Calil

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 20/09/2020)

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