Movimento duplo

Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague (Deux de la Vague, França, 2010)

Dir: Emmanuel Laurent

Gratíssima surpresa esse documentário. Se de longe pode parecer um mero artifício para falar do início do movimento francês no final da década de 50, e de sua enorme contribuição para a história do cinema, ou de apenas vangloriar as figuras de seus dois principais expoentes, Jean-Luc Godard e François Truffaut, o documentário focaliza a relação dúbias entre os dois, enquanto remonta uma época de efervescência cultural e política das mais interessantes.

Essa relação dual é o que mais chama atenção no filme. Godard e Truffaut são geralmente vistos como os grandes amigos que ergueram a Nouvelle Vague, com ajuda de muitos outros, claro, mas pouco se diz dos conflitos entre eles, que culminarão numa cisão sem retorno (Truffaut morre em 1984 sem se reconciliar com seu ex-companheiro).

Por mais que possuíssem uma visão crítica do cinema bastante parecida, como a noção largamente difundida do cinema de autor, e defendiam idéias de produção muito próximas, havia, desde o início da aproximação deles, certa rixa. O documentário mostra isso, por exemplo, quando Truffaut vai apresentar Os Incompreendidos no Festival de Cannes (que marca didaticamente o início da Nouvelle Vague), e Godard permanece em Paris se sentindo “fora” do movimento.

E essa dualidade se mostra evidente na própria obra que os dois vão construir ao longo de suas carreiras. Truffaut, embora crítico de cinema combativo e incisivo, que não perdoou o cinema francês “pasteurizado” da época, se mostrou um terno diretor, mais próximo ao classicismo do bom cinema norte-americano. Por sua vez, anarquia e iconoclastia marcam o cinema de Godard e sua irreverência narrativa, talvez o maior esteta do movimento.

Antoine de Baecque, ele que é biógrafo de Godard e Truffaut, ex-crítico e ex-editor-chefe da Cahiers du Cinéma, assina o roteiro do documentário com um texto charmoso e conciso, que mantém o ritmo interessante até o fim, com um foco preciso entre os anos de 1959 e o pós-maio de 68 quando os dois precursores vão entrar em confronto mais direto.

Interessante como o filme se constrói a partir de um recorte de imagens de época, seja de diversos filmes (não só dos dois cineastas em evidência, mas de uma série de referências importantes) ou de momentos pessoais, inclusive nas entrevistas que usa. Ao invés de se apoiar em estudiosos atuais ou mesmo os envolvidos ainda hoje vivos, o filme prefere resgatar depoimentos de época de Godard e Truffaut, principalmente, mas também de gente como André Bazin, Jacques Doniol-Valcroze, Henri Langlois, Pierre Kast, num resgate documental muito bom, além de cartas e textos dos dois expoentes.

O filme inclui ainda a atriz Isild le Besco no tempo atual como personagem que está resgatando todo esse percurso histórico, revelando a relação dos dois cineastas e a eclosão do movimento ao mesmo tempo. Num dos melhores momentos do filme, ela sobrepõe fotos que revelam a união deles dois em torno do ideal da Nouvelle Vague, mas também deixam claros os caminhos diferentes que eles tenderão, infelizmente (ou não?) a tomar.

3 thoughts on “Movimento duplo

  1. Realmente, é mais sobre a trajetória deles juntos e suas rixas, do que necessariamente sobre o movimento. Sobre "escolher" um dos dois, acho que o Godard tem uma grande importância não só na Nouvelle Vague, mas no Cinema de uma forma geral pelo contribuição que deu no sentido de trazer a anarquia, o vigor narrativo, a desconstrução da linguagem puramente clássica. Mas no fundo, o cinema do Truffaut é tão cheio de ternura, verdade e emoção, também com sua vigorosidade, que também tendo a fica com ele. O Godard é mais cerebral, Truffaut é puro coração. Embate difícil, esse.

    Sim, Kamila, acho na verdade um filme ideal para se começar a ter um contato maior com a Nouvelle Vague e com a obra dos dois. Veja e acredito que você vai ficar louca pra ver os filmes dos caras.

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