Mostra Tiradentes: Desvio

Se existe uma presunção de que os filmes da Mostra Aurora sejam calcados numa renovação de linguagem e risco, filmes como Desvio, de Arthur Lins, servem para revelar uma outra preocupação que se concentra mais no conteúdo e naquilo que se coloca em cena do que necessariamente no seu tratamento. Talvez por isso resida aqui uma frustração pelo filme não ir até as últimas consequências com as escolhas que seu personagem faz – e escolher aqui é verbo fundamental para este protagonista – que são também as escolhas do próprio filme diante do campo de possibilidades que se abrem no tecido narrativo.

Não se trata, porém, de cobrar ousadia sobre aquilo que o filme molda enquanto discurso que ele elege, no qual ele aposta, mas antes se trata de entender os movimentos que possam fazer dele um estudo profundo, fora do lugar-comum, também ele coerente, antes mesmo que se tome por corajoso, por exemplo. Desvio constrói muito bem um personagem, todo um entorno familiar que se desdobra à medida em que ele vai refazendo o contato com pessoas próximas – ou nem tão próximas assim –, um passado e um presente que o filme faz vislumbrar com habilidade. Mas parece dar um passo atrás quando precisa tomar parte nessa coragem, nesse salto que faça o filme ganhar força e audácia que se espera.

Pedro (Daniel Porpino) está cumprindo pena na prisão e recebe um indulto de Natal. Depois de muitos anos de pena, um bom comportamento e um estágio de “recuperação” avançado a olhos vistos dentro da cadeia, o filme concentra-se nesse período de folga, de arejamento, que se torna rapidamente confronto com o passado, com os que ficaram e com a própria consciência; mais ainda, é o embate de Pedro com aquilo que ele poderia ter sido e com o que, agora,ele será capaz de construir para si, antes de qualquer outra coisa, fora todas as projeções e pretensões que os demais fazem e criam por ele. É um peso estar em seu lugar.

De imediato, Pedro faz contato com a prima Pâmela (Annie Chrissel) e, através dela, abre-se para si todo um universo juvenil do qual ele soa um tanto deslocado, já crescidinho, ainda que tente se inserir ali. Existe toda uma projeção de juventude perdida, de algo que foi deixado para trás – o tempo sempre implacável –, mas transbordando o desejo latente de fazer parte de algo, de construir uma imagem e uma persona que possa ser ele mesmo, consciente, e não um esboço do que poderia ter sido. Essas percepções talvez não sejam ditas propriamente pelo personagem, mas estão impressas no filme.

As muitas conversas, encontros e confrontos com os demais personagens, amigos e familiares, conhecidos e desafetos, perfazem esse caminho de busca (por respostas?) que se dá no interior do personagem – e vale destacar o ótimo desempenho de Porpino para dar corpo e intensidade a esse homem, tão taciturno, consumido por dúvidas e remorsos, pelo menos ao que parece pelo olhar atento e pelos movimentos sempre muito cautelosos – de andar, de falar, de tomar iniciativas ou partidos, como quando aconselha a prima depois de uma discussão; nessa cena, especificamente, apesar de se dirigir a outra pessoa, é também uma forma de firmar sua própria postura diante das adversidades, a coragem tomada e as escolhas que precisam ser feitas.

Nesse sentido, é possível criar paralelos entre esse filme e o norueguês Oslo, 31 de Agosto, de Joaquim Trier, também sobre um jovem “desajustado” (nesse caso um dependente químico) que recebe autorização para visitar a família depois de avançar no tratamento e se distanciar das drogas. Ambos os filmes operam na mesmo movimento de fazer seu protagonista, em momento crucial da vida, refletir e colocar em andamento a construção de um projeto de vida que precisa ser retomada dali por diante.

No filme norueguês existe uma posição muito corajosa, ao final, que sustenta uma posição, uma escolha que o personagem faz, e isso diz muito sobre ele e sobre sua condição diante dos desafios do mundo e daquilo que se espera dele. Algo semelhante não acontece no longa brasileiro – que, além de tudo, se chama “desvio” –, não porque não haja essa tomada de atitude – ela está lá de modo muito claro e toma mesmo o espectador de surpresa –, mas porque o próprio não consegue fazer a escolha de assumir tal postura como determinante na vida do protagonista, para o bem ou para o mal. Fica um gosto de prudência ao fim, um sentimento de fraqueza que é menos estado do personagem e mais inoperância e compreensão do próprio filme sobre o que significa a posse de um partido.

Desvio (Brasil, 2018)
Direção: Arthur Lins
Roteiro: Arthur Lins

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