Mostra SP: Pegando a Estrada

Espirituosíssimo road movie nas paisagens áridas do Irã, Pegando a Estrada é uma estreia sólida do Panah Panahi na direção de longas. Nesse momento, deve ser um peso ser o filho do renomado cineasta Jafar Panahi, dono de uma obra coesa e autoral, porque as comparações são inevitáveis e podem ser cruéis. Mas deve dar também certa segurança pelo exemplo e pela via do projeto de cinema que faz parte do universo que Panahi pai construiu até então.

Panah, por sua vez, escolhe lidar com um subgênero muito explorado no cinema, feito em toda parte do mundo e cujas marcas estão bem sedimentadas por aí. O filme de estrada, ao mesmo tempo em que possui características universais (“o importante é o caminho e não a linha de chegada”), também se molda bastante às intenções do diretor, nesse caso equilibrando camadas políticas (como não poderia deixar de ser) com outras mais divertidas e dos pequenos melindres familiares.

O que faz a diferença aqui são as nuances e os detalhes plantados ao longo do filme, seja nos traços e atitudes dos personagens, seja na própria concepção daquela história: uma família (pai e mãe, irmão mais velho e irmãozinho pequeno – e que garotinho elétrico!) viajam de carro não se sabe exatamente para onde e com qual intuito. Boa parte da graça do filme está em pescar as sutilezas das falas e comportamentos desses tipos que, aos poucos e sem pressa, vão costurando uma jornada muito sólida e recompensadora em termos emocionais.

O pai (Hasan Majuni) está com a perna quebrada, por isso vai no banco de trás, resmungando e soltando ironias; quem dirige é o filho mais velho (Amin Simiar), rapaz tenso e de semblante sério, quase que deslocado do clima de animação geral, este dado muito por causa do pequeno garoto (Rayan Sarlak) que não para quieto, atrevido e esperto, engraçado e ingênuo, como são os bons personagens infantis. A mãe (Pantea Panahiha) é o pilar da sensatez do todo, ainda que balançada por alguma questão interna.

O grupo perfaz um retrato de família crível e nada caricato, com seus dramas e conflitos, também com seus afetos e doses de amor, tudo muito bem balanceado. Na verdade, o roteiro do filme é muito perspicaz ao contrapor tantas nuances emocionais que se vislumbram por ali, que vão do drama ao humor com muita facilidade e propriedade. O desenho da trama, até o seu final, vai revelar uma estrutura muito bem articulada, em certa medida até mesmo calculada nos seus pormenores, e que desafia as particularidades do road movie. Neste filme, o ponto de chegada é muito importante porque ele não só concretiza suposições que são possíveis de se aventar ao longo da trama, como arremata o filme e suas intenções temáticas e mesmo políticas.

Nesse último quesito, no entanto, o filme prefere manter no subtexto os detalhes mais espinhosos, sugerindo algum tipo de perseguição política a recair sobre um dos personagens, mas sem grandes exposições (compreensivo no Irã de hoje e na forma como os cineastas são tratados no país, Jafar Panahi sendo inclusive um grande exemplo), ainda que o desenlace final da trama escancare um arriscado movimento muito às margens das jurisdições legais do Irã e exponha certa situação preocupante no país.

Mas as coisas se esclarecem, de fato, na parte final do filme, e os personagens adultos todos ampliam as suas demandas afetivas, revelando suas fraquezas (mesmo o pai, mais turrão), mas também se fortalecendo enquanto família. A criança pode ser vista como um alívio cômico na estrutura da trama, mas mesmo aí ela cumpre um papel salutar de arregimentar aquelas pessoas e sempre lembrar dos laços de afeição, mesmo que pela chave do humor e da birra. Com isso, Pegando a Estrada torna-se um belo filme de despedidas e também sobre as bases da família.

Panah, felizmente, evita o conflito gritado, sem excessos dramáticos de apelo fácil (há duas cenas chave no longa, ambas carregando essa ideia da “despedida”, filmadas em plano super aberto, ao longe, escolha muito significativa para esse tratamento cuidadoso do tom geral da obra). Panahi filho filma com elegância e habilidade, explora as belas paisagens montanhosas e acidentadas do interior do país, porém sabe mais ampliar a paisagem emocional daquele microcosmo que ele filma.

Pegando a Estrada (Jaddeh Khaki, Irã, 2021)
Direção: Panah Panahi
Roteiro: Panah Panahi

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