Mostra SP: Os Intranquilos

Os conflitos conjugais sempre foram uma constante na obra do belga Joachim Lafosse e não é diferente com esse Os Intranquilos. Mais do que a temática, são obras que estão com os dois pés fincados no drama duro e expositivo, nas explosões e farpas trocadas entre quem se ama, aqui desenhado a partir da história de Damien (Damien Bonnard), um artista plástico que passa a sofrer ataques de bipolaridade. Sua mulher, Leila (Leïla Bekhti), o filho pequeno deles (Gabriel Merz Chammah) e alguns outros personagens próximos serão as grades testemunhas e também os afetados pelo descontrole emocional que passa a tomar conta do personagem.

O filme até consegue tratar a condição mental de Damien com certa sutileza e cuidado, mas não é isso o mais importante. Lafosse está muito mais interessado em registrar os momentos de conflito e embate, a partir do desarranjo psicológico de Damien, e faz isso de modo esquemático e repetitivo, trabalhando a partir de ciclos. Primeiro o personagem está bem, confraternizando e se divertindo, até que seu comportamento começa a ficar arisco, com picos de ansiedade e hiperatividade, as coisas se desestabilizam, o clima ganha tensão e tudo se descontrola. Em seguida, as coisas se acalmam, o filme faz uma elipse e logo a narrativa já está preparada para mais um novo surto de Damien. E assim segue.

É flagrante a maneira como o filme escolhe esconder do espectador detalhes sobre a real condição de saúde do personagem, o nível da sua crise, a sua situação pregressa – a própria palavra bipolaridade só é dita lá para o final do filme, quase que casualmente, sem nenhuma contextualização. Sempre que isso está prestes a acontecer, o filme corta e lança a narrativa para tempos depois. Nunca presenciamos uma conversa com os médicos, e mesmo marido e mulher nunca falam francamente sobre a situação do casal, nos momentos em que o marido tem condições ideais para isso. Todas as vezes que eles entabulam uma conversa é já no limite da paciência, esgotados e meio perdidos, para então começar um show de gritaria, farpas trocadas e acusações em que cada um pensa apenas em si e nas suas dificuldades dentro daquela situação.

Os personagens que rondam Damien (para além da mulher e filho, há o pai dele e o agente no mercado artístico) estão presos a essa estrutura narrativa e parecem funcionar apenas como adereços dramáticos, como se eles só estivessem ali esperando para se exasperar com o novo surto do homem e os riscos em que ele se coloca (e também ao filho, figura mais vulnerável aos desequilíbrios do pai). Nesse sentido, é frustrante ver Leila agindo como essa mulher que aguenta a barra de tentar manter a estabilidade da família, mas apenas filmada em momentos de estresse e desestabilização emocional, sempre gritando, reclamando e irritadiça, quando ela, mais do que todos ali, conhecem muito bem a condição do marido. No entanto, como o filme não nos dá a ver que tipo de entendimento esses personagens têm sobre a situação de Damien, só lhes resta mesmo tensionar, discutir e agredir. Essa é uma constante até o fim do longa. Uma pena porque os dois atores principais são ótimos e estão realmente entregues a seus personagens, mas o roteiro do filme não os ajuda a torná-los mais profundos.

O filme só não termina no ponto em que começou – com os personagens reféns da condição psicológica de Damien, meio que à deriva – porque nos minutos finais ele consegue expressar um mínimo de consciência e autocontrole sobre si mesmo. Aqui, o filme aponta para uma possível mudança de mentalidade que nada mais é do que o entendimento de que aquilo não vai passar, não há cura, apenas modos de tratar e de conviver com as tempestades. Antes disso, porém, Os Intranquilos só nos deixa à mercê dos temporais, sem nos situar neles.

Os Intranquilos (Les Intranquiles, Bélgica/França/Luxemburgo, 2021)
Direção: Joachim Lafosse
Roteiro: Joachim Lafosse, Lou Du Pontavice, Juliette Goudot, Pablo Guarise

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