Mostra SP: Não Me Toque

Adina Pintilie lançou seu primeiro longa-metragem no Festival de Berlim e já saiu de lá com um Urso de Ouro, um feito e tanto para um trabalho tão pouco convencional como Nãe Me Toque. Principalmente porque o filme se encontra naquela zona do risco e da investigação, lida com questões delicadas e ainda se propõe a alguns jogos de encenação. Podia dar tudo muito errado, mas existe mesmo certa maturidade na condução e firmeza na proposta, ainda que possa ser questionado em alguns (ou vários) pontos.

De modo geral, o filme é um estudo sobre o corpo e a sensibilidade (ou o seu não alcance), com foco em personagens fora de padrões sociais: Laura (Laura Benson) é uma mulher de meia idade com dificuldades de contato físico com outras pessoas; somos apresentados também a uma espécie de grupo de terapia com gente de diferentes tipos de deficiência física e mental que exercitam o toque e a discussão sobre seus desejos, limites e experiências sexuais, incluindo aí Christian (Christian Bayerlein), um homem com graves atrofia corporal e Tomas (Tómas Lemarquis) que perdeu os pelos do corpo.

Laura é talvez a personagem com mais destaque. Em uma de suas primeiras cenas, ela contrata um jovem garoto de programa para que ele se masturbe na cama enquanto ela apenas observa; somente quando ele vai embora ela se deita na cama em que ele estava. Ela trabalha seus traumas conversando com outros profissionais, desde um terapeuta até uma mulher trans mais velha. Posto desta forma, Não Me Toque pode soar de certo modo fetichista, pendendo para o lado da bizarria e da exploração do estranho, daqueles corpos em desafio com sua própria libido. Porém, um dos maiores trunfos do filme é saber oferecer camadas sobre tais personagens à medida em que eles se abrem para nós e para a câmera, artefato que marca presença frontal no filme, inclusive com aparição da própria cineasta enquanto interlocutora atenta aos que os personagens têm a dizer – personagens esses que parecem emular e levar para a tela muitas questões de suas próprias vidas, em especial os dois rapazes.

O filme intercala as cenas e conversas com os personagens e, ainda que as discussões travadas possam apontar sempre para as mesmas questões que já compreendemos serem latentes para eles, o filme consegue com isso criar uma empatia que elimina a sensação de superficialidade, até mesmo pelos caminhos pouco óbvios que escolhe percorrer. É menos um filme explicativo sobre os conflitos internos de cada um, e mais um exercício de escuta sobre aqueles dramas na medida mesmo em que os personagens buscam superar suas dificuldades, suas fobias e limitações. A fobia e “inadequação” do corpo, e as consequentes barreiras sexuais que isso implica, ganham um tratamento sensível pelo olhar de Pintilie que dilata o tempo, não tem pressa em acompanhar aqueles sujeitos e embala todo o filme com uma aura de pureza – a direção de arte investe em cenários claros, quase assépticos, a fim de conferir um tom etéreo e terapêutico a esse espaço de entrega e de compartilhamento de intimidades.

O filme apresenta ares de um documentário em termos formais, mesmo se assumindo como ficção dramática, investindo em situações um pouco mais narrativas – a curiosidade Laura a leva, por exemplo, a seguir Tomas pela rua e numa dessas, eles acabam entrando num clube de sexo onde acontece uma orgia; dramaticamente isso não acrescenta muito ao enredo para além de revelar aquele espaço de pulsão sexual que tanto é um empecilho para Laura.

Há também os poucos momentos de intervenção da diretora, esses sim muito fracos e sem grandes avanços narrativos – em certo momento ela troca de lugar com Laura e, saindo detrás da câmera, ela passa a ser objeto de observação somente para que ela possa “concluir” o quanto é difícil estar naquela posição. O filme tenta sugerir um entendimento do que significa estar no lugar do outro, mas não se dá conta que já faz isso desde o princípio, desde o momento em que desglamouriza o sexo, o corpo padrão e nos apresenta àquelas pessoas e suas buscas interiores. O resultado é um surpreendente filme sobre as potências escondidas do corpo e uma investigação profunda sobre a intimidade.

Não Me Toque (Touch Me Not, Romênia/Alemanha/República Tcheca/Bulgária/ França, 2018)
Direção: Adina Pintilie
Roteiro: Adina Pintilie

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