Mostra SP: Isso Não é um Enterro, É uma Ressurreição

O mote narrativo da desapropriação e dos homens e mulheres que são coagidos pelas forças do capital a abandonar suas terras, casas e espaços de vivência (que são também suas memórias e origens), tem sido largamente explorado no cinema atual, o supra sumo da história de resistência (de Aquarius ao Leviatã de Zvyagintsev, entre muitos outros). Quanto mais uma suposta fragilidade for ameaça pelo poder de um grupo ou instituição (muitas vezes invisível) de maior amplitude e poder de fogo, mais intensa é a luta e a vontade de resistir e lutar. Isso Não é um Enterro, É uma Ressurreição pode facilmente ser colocado nesse grupo, muito embora se destaque pela forma única com que lida com temas e percepções complexas como morte e permanência, mais do que apontando para uma insurgência coletiva à lá Bacurau – a despeito, inclusive, da cena inicial do filme: o cavalo bravio a ser domado.

A personagem que encarna o senso de resistência e enfrentamento é Mantoa (Mary Twala), uma senhora já embalada pelo signo da morte após enterrar marido e filhos, além de esperar em vão a volta do último rebento que não chega à pequena vila cercada de montanhas onde ela mora no interior do Lesoto, país incrustado na África do Sul. Isso porque sua vila precisa ser desabitada por conta da construção iminente de uma represa no local, o que obriga a retirada de todos os moradores. Mas Mantoa pergunta: “e as nossas covas?”. O que fazer com os mortos, eis o dilema.

O cineasta Lemohang Jeremiah Mosese, ele mesmo nascido no Lesoto, mas residente na Alemanha, dota seu filme de uma atmosfera quase mítica, filmando num formato 4:3, com fotografia granulada, a casa da personagem e suas vestimentas imponentes remetendo a um estado outro de reclusão. Usa o recurso da rememoração (um narrador-griô é quem conta para o público a história daquela vila e da viúva Mantoa que recusa tirar suas roupas de luto) que quase sugere uma fábulas de tempos imemoriais, mas acaba por acentuar mesmo um tom de realismo seco e a dureza que é investir apenas com o corpo contra quem chega portando armas de ferro e fogo.

Mosese encontra maneiras muito pessoais para dar corpo a esse enfrentamento desigual, escapando à exotização dos corpos e dos hábitos daquele povo, bem como sugerindo mais do que explicando didaticamente os rumos desse embate que se estabelece no lugar. Para uns, um embate pela terra, espaço físico; para outros, luta pelas raízes e memórias. Outra armadilha da qual Mosese escapa é a do elogio ao amadorismo das atuações. Pois Mary Twala interpreta Mantoa como se fosse ela mesma uma moradora da vila local ficcionalizando a si mesma no filme. Mas basta alguns minutos da mulher em cena para se reconhecer ali uma atriz de grande porte.

Conhecida e festejada atriz da África do Sul, tida como uma instituição local (ela que faleceu ainda neste ano de 2020), Twala confere uma dignidade ímpar a essa personagem e seu calvário de enfrentamentos, que não tem nada de lamentação e sim de resiliência combativa – curiosamente, aquela região é chamada desde tempos remotos de Planície das Lamentações, como ela mesma explica a um garoto no filme, o que apenas acentua o histórico de dores e desgraças pelas quais aquela população passou; a resistência está no sangue.

Mas há outro fator que torna Isso Não É um Enterro… um filme muito mais preocupado com as agruras internas da personagem do que com uma contextualização objetiva sobre o desalojamento: Mantoa se preocupa com o descanso dos mortos porque ela mesma pressente que seu fim está próximo. Claro que não se trata apenas de uma inquietação individualista (em determinada cena, ela viaja até a sede da prefeitura e solicita, ingenuamente, uma conversa com o administrador local). Porém, diante da tragédia anunciada, a preocupação com os mortos, com as covas e a terra enquanto berço final e inicial – do pó viemos, do pó retornaremos – acaba tocando em um anseio pessoal sobre seu próprio destino, e consequentemente sobre como isso afeta a ordem natural das coisas, da vida em comum que aquelas pessoas compartilham em sociedade – comum, aliás, a qualquer agrupamento social: enterrar seus mortos é uma das constantes mais naturais na História das civilizações.

Mantoa está imbuída tanto da disposição em questionar as violências arbitrárias a que eles estão sendo submetidos, quanto dos preparativos para o seu próprio funeral. Um depende da vida, o outro carece da morte, e isso parece ganhar um sentido uno para Mantoa. Ela entende, mais que ninguém – e daí a sua disposição estoica para o confronto – que é preciso mesmo resistir e enfrentar porque, no final, os mortos seremos nós.

Isso Não é um Enterro, É uma Ressurreição (This Is Not a Burial, It’s a Resurrection, Lesoto/África do Sul/Itália, 2020)
Direção: Lemohang Jeremiah Mosese
Roteiro: Lemohang Jeremiah Mosese

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