Festival Varilux: Graças a Deus

François Ozon é dos cineastas franceses mais prolíficos e versáteis de sua geração. Passeia por temas distintos, assim como por gêneros cinematográficos vários, uma espécie de experimentador das possibilidades narrativas do cinema. Certamente por conta disso é difícil estabelecer em sua filmografia um estilo ou uma marca autoral mais evidente. Porém, nos últimos anos, o cineasta tem se dedicado a contar histórias de modo ligeiro, baseado em diálogos rápidos, situações que tentam prender a atenção do espectador, geralmente num jogo intrigas e mistérios que não tardam a ganhar reviravoltas inesperadas.

É bem o que acontece aqui nesse Graças a Deus – exceto pelas intrigas –, vencedor do Grande Prêmio do Júri no último Festival de Berlim – curiosamente, Ozon é desses cineastas médios, irregulares, de certa forma até populares no seu país natal, mas que angariou para si certa autoridade e respeito enquanto realizador, o que lhe rende sempre bons espaços nos maiores festivais de cinema no mundo. Graças a Deus chega com tema espinhoso, os casos de pedofilia cometidos por padres católicos que não são devidamente condenados.

Repetindo um método narrativo, mais do que um estilo propriamente dito, o filme começa estabelecendo de cara a situação: Alexandre (Mevil Poupaud), pai de uma família bem estabelecida, relata os casos de abuso sexual que sofreu de um padre quando ele era criança, jovem escoteiro que era molestado sempre que eles ficavam a sós. Anos mais tarde, ele descobre que o padre Preynat (Bernard Verley) continua exercendo o sacerdócio, dando aulas de primeira comunhão para crianças e jovens, além de rodeado de coroinhas para lhe auxiliar. Começa então a batalha para que Alexandre convença os altos representantes do clero a afastarem o padre pedófilo, o que evolui para uma guerra jurídica complexa contra os poderosos da Igreja.

Uma dos méritos desse filme é que o roteiro escrito por Ozon – a partir de um caso verdadeiro que ainda está sob jurisdição – é muito claro e assertivo nas suas camadas e reflexões, incluindo aí o desenho e as posições assumidas pelos personagens. A narrativa ligeira, com texto afiado e sempre evoluindo para situações subsequentes com muita rapidez, era usada em outros de seus filmes acompanhada de mistérios e ambiguidades, servindo como despiste, tentativa de implantar certa incerteza e dúvida no espectador (são casos como os recentes O Amante Duplo, Uma Nova Amiga, Dentro da Casa). Isso cria certa fluidez ao filme, mas também aborrece por suas tantas reviravoltas e subterfúgios até se chegar ao desfecho.

Aqui, o tom é o mesmo, mas a finalidade, felizmente, é outra; não há lugar para joguinhos de verdade/mentira, implantes de intrigas que logo se dissolvem para dar lugar a uma outra. Em Graças a Deus, Ozon é muito claro e assertivo nas suas proposições e na maneira como os personagens lidam com as questões que se lhes apresentam. Na primeira cena do filme, Alexandre já aparece, em voz off, lembrando e contando os abusos que sofreu quando criança. Ele vai se encontrar com o padre Preynat poucos minutos depois e eles têm uma conversa franca, não sem certo desconforto. O padre, por sua vez, assume os abusos que cometeu, confessa ter consciência do erro, dos traumas que provocou nas crianças – porque não foram poucas –, entende a dimensão patológica que a pedofilia tem e o crime que ela representa. Só não aceita reconhecer publicamente seus delitos.

O filme, portanto, não está interessado em buscar culpados, em desvendar “verdades” e em desmascarar culpados – estes já estão em visibilidade. O conflito da trama recai muito mais sobre como as vítimas precisam se engajar nos processos de denúncia, depois de vencida a vergonha e os traumas que os abusos provocam, e principalmente sobre a pressão para que a Igreja assuma publicamente seus erros e puna de fato todos aqueles que cometeram tais perversidades.

Com a experiência que acumula, Ozon conduz com muita segurança a trama, apesar de não evitar um inchaço no roteiro. Lá na terça parte do filme, por exemplo, vai ainda apresentar um novo personagem que se junta a Alexandre e demais vítimas no grupo que se forma para o embate judicial. Visualmente, a fotografia assume uma tonalidade fria, justificada pelo peso do tema, mas ainda assim sem nuances, e mesmo como encenador Ozon se contenta com o básico narrativo, meio preguiçoso até na construção dos planos, escorando-se na agilidade narrativa. Além disso, os flashbacks são totalmente dispensáveis na trama. De qualquer forma, é um filme muito honesto e justo com o assunto tratado e com as mazelas dos personagens, sem truques baratos dessa vez.

Graças a Deus (Grâce à Dieu, França/Bélgica, 2019)
Direção: François Ozon
Roteiro: François Ozon

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