Descobrindo um Godard diferente

Parece que a fase inicial de Jean-Luc Godard (1959-1968) é a mais frutífera e também a mais marcante de sua obra. Depois do Maio de 68, o cineasta vai adquirir uma postura mais militante e se ligará ao grupo Dziga Vertov com o qual fará o dito “cinema-manifesto”. Vai voltar depois com uma nova estética. É aí que sua obra vai ficando mais inacessível, difícil e até chata. Um outro Godard, portanto. São dessa fase:

Nouvelle Vague (Idem, França/Suiça, 1990)
Dir: Jean-Luc Godard


Eu já tinha lido em vários lugares como a filmografia do Godard, a partir da década de 70, foi ficando cada vez mais hermética e difícil. Com o filme Nouvelle Vague pude comprovar isso de forma exemplar. O que no início de sua carreira era tido como experimentação e uma feliz quebra das formas narrativas do cinema clássico, aqui possui ares de intelectualismo e complexidade que, no fundo, não quer dizer muita coisa.

A trama (se é que existe uma) começa quando uma mulher (Domiziana Giordano) atropela um homem (Alain Delon) e o leva para casa, mantendo com ele um leve relacionamento. Isso acontece logo nos primeiros minutos e o resto do filme discorre num fluxo ininteligível de imagens. Um dos piores ranços do filme (e toda essa fase da carreira do cineasta), é fazer com que os personagens estejam a todo momento filosofando sobre a vida, o tempo, o amor… Muita coisa parece ser pertinente, e permeia o texto de Godard certa poeticidade lírica; mas o filme acaba se tornando distante porque confuso. Depois da revolução, Godard se perdeu em si mesmo, talvez na vã tentativa de se superar. Tarefa difícil.

Passion (Idem, França/Suiça, 1982)
Dir: Jean Luc-Godard


Chega um momento em Passion em que não há mais história, ou então é quando nos damos conta de que a história narrativa não existe, ou ainda que não é ela o mais importante. Temos um cineasta (Jerzy Radziwilowicz) preparando um filme que reproduz telas de pintores famosos (Rembrandt, Goya), ao mesmo tempo em que se relaciona com uma hoteleira (Hanna Schygulla) e também com uma operária (Isabelle Huppert); está última, ao mesmo tempo, enfrenta problemas com o patrão numa fábrica. Passion parece mais interessado em falar sobre as condições da arte, seu significado, mas também das relações trabalhista, que apelam para o lado marxista de Godard. Tudo isso rodeado de belas imagens, mais uma vez contando com o zelo estético do diretor de fotografia Raoul Coutard.

E foi só nesse filme que eu notei como a câmera de Godard permanece agora mais estática, os enquadramentos mais fixos e bem trabalhos, os planos mias longos, conferindo um efeito dramático interessante, bem diferente da liberdade estética de seus filmes iniciais. A anarquia de acompanhar seus personagens com leveza e graça foi deixada para trás, justamente o que encantava em seus filmes. Agora, ele prefere as tramas complexas que soam bastante gratuitas, mas tentam alcançar o status de obra “ricamente complexa”. Claro que não se deve esperar que um cineasta seja fiel a um estilo de filmagem, nem cobrar uma estética, mas fica uma sensação de desconforto justo porque antes os filmes dele eram mais agradáveis de se ver.

Carmen (Prénom Carmen, França, 1983)
Dir: Jean-Luc Godard


Taí um filme dessa fase mais hermética do cineasta que não deixa de ter suas estranhezas, seus arroubos de montagem fragmentada, seus personagens agindo de maneira esquisita e inesperada, mas que funciona muito bem como narrativa. Isso porque, apesar do estilo difícil, é possível acompanhar a história sem a sensação de estarmos gratuitamente perdidos, como acontece em várias outras produções godardianas (engraçado que o próprio cineasta faz uma ponta interpretando um louco no hospício).

Carmen (Maruschka Detmers) é uma ladra de bancos que em um desses seus roubos, se apaixona pelo policial que faz o segurança do local. O homem (Jacques Banaffé) não só não consegue impedir o assalto como também foge com Carmen, deixando tudo para trás. Do amor bandido que emana dos dois (demonstrando personalidades bastante fortes), surge a sensação de personagens que buscam fortes emoções. São os tipos marginais tão comuns na obra do diretor, bem como a atmosfera de filme policial, sempre subvertido pelo cineasta. Há muito de estranheza na narrativa devido às estranhas atitudes dos personagens, mas que ganham contornos de uma bem-vinda esquisitice.

3 thoughts on “Descobrindo um Godard diferente

  1. Olha lá Rafael, tb estava lá, mas infelizmente por uma série de contratempos este foi o ano q menos participei do festival por problemas pessoais. Só consegui acompanhar algumas palestras pela manhã e olhe lá.
    Mas todos anos estou lá. É uma pena q naum tenha conseguido acompanhar a retrospectiva Godard, mas quem sabe na próxima?
    Abraços.

  2. Olha só Wanderley, imaginei que você estaria por lá, mas acabei não entrando em contato contigo. Uma pena que você não conseguiu acompanhar muita coisa, foi bastante corrido, mas bem proveitoso.

    É, também recomendo isso, Gustavo, os mais herméticos para o fim. O bom mesmo é acompanhar primeiro os filmes da década de 60, são os melhores em minha opinião, e os mais agradáveis também.

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