Da aventura à responsabilidade

Xingu (Idem, Brasil, 2012)

Dir: Cao Hamburger

Existe um conflito ideológico muito interessante nesse Xingu: a despeito de ser um filme nacionalista, seus heróis lutam contra o próprio sistema perpetrado pela Nação que nega a identidade indígena como algo de nossa formação cultural, ao mesmo tempo em que busca justamente certa unidade federal. O problema é que esse senso de integração está mais ligada à terra propriamente dita e o que ela pode oferecer em termos de lucro financeiro do que uma constituição de princípios patrióticos.

É em meio a esse conflito que os irmãos Villas-Bôas, Orlando (Felipe Camargo), Cláudio (João Miguel) e Leonardo (Caio Blat), terão uma importância crucial na luta pela preservação e respeito às culturas indígenas que se descobrem na região central do Brasil. O mais interessante é perceber como essa empreitada surge sem a menor carga de (boas) intenções e acaba se tornando a razão de existência desses homens que largaram vida confortável em São Paulo.

Ao pegar carona na expedição Roncador-Xingu que recrutava trabalhadores braçais (em especial aqueles que não tinham instrução e sem grandes oportunidades de trabalho nas cidades), em meados dos anos 40, os irmãos partem em busca de aventura, sem a menor ideia dos povos indígenas que encontrariam pela frente habitando as regiões virgens do centro do país.

Interessante como o diretor Cao Hamburger constrói com muita parcimônia esse curioso interesse que se frutificou entre os irmãos sobre os nativos, tornando-os líderes de uma causa que pouca gente gostava de defender (ainda mais naquele tempo em que a questão indianista era um certo tabu). Hamburger deixa de lado a sutileza ao tratar de temas espinhosos através de um olhar infantil, como fez no ótimo O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, mas continua atento para questões sociais, sem precisar levantar bandeira ferrenha a favor delas.

Ainda assim, ao retratar essas questões da política nacional e o início de uma rejeição em escala crescente sobre os índios brasileiros, o filme lança luz sobre os próprios conflitos atuais envolvendo as disputas de poder entre os “brancos” e os povos nativos cada vez mais dizimados, situação que vimos se multiplicar nos últimos anos. Mesmo assim, não existe um olhar mais pesado e contundente sobre a questão no filme, como no ótimo Terra Vermelha, ou nos preciosos e humanista documentários Corumbiara e Serras da Desordem, deixando maior espaço para construir essa relação dos irmãos para com causa tão nobre.

Aqui, os índios são revelados nas suas idiossincrasias culturais, sem que se busque uma construção de bom/mau selvagem; são povos confrontados em seu próprio habitat natural. Da mesma forma que não se tenta santificar os Villas-Bôas em sua posição de heróis nacionais que é difícil não admitir que realmente são. Têm lá suas fragilidades e desavenças.

Exibido na Mostra Panorama do Festival de Berlim deste ano, Xingu é ainda um deleite visual, em especial por conta da fotografia de Adriano Goldman que valoriza as belas paisagens naturais, em esplêndidas tomadas gerais do cerrado brasileiro, com luz farta. Mas por tratar de tema complexo, muitas vezes utiliza-se a contraluz que contrapõe a beleza da região com a obscuridade das barreiras e resistências que a questão indianista enfrenta. Mesmo assim, Xingu é um filme feliz, não só pela execução apropriada, mas por fazer jus aos homens que doaram sua vida e seu trabalho a uma causa humana e, acima de tudo, por terem conquistado vitórias que se não são ideais, devem ser festejadas.

7 thoughts on “Da aventura à responsabilidade

  1. Ainda não assisti a este filme, mas estou com altas expectativas, especialmente porque acho que se propõe a fazer um retrato interessante justamente sobre esta questão cultural que seu texto tão bem aborda. Assim como somos descendentes da cultura portuguesa, somos descendentes da cultura indígena e esses irmãos foram mesmo os pioneiros na preservação destes valores, que, hoje, são cada vez mais raros, especialmente tendo em vista o fato de que a cultura indígena se mesclou muito com a do “homem branco”, especialmente nas últimas décadas.

  2. Bom dia Rafaela,

    Gostaria de lhe parabenizar pelo
    primeiro lugar no concurso Estadual de Estímulo à Critica de Artes da Secult-Ba.Gostaria de saber quando será disponibilizado esses trabalhos.Um grande abraço,Aché!

  3. Bem dito, Kamila. Acho que você vai gostar do filme, temum olhar bem sóbrio e humano da questão, sem exagerar no tom de denúncia sócio-cultural.

    Gomes, a Funceb (orgão responsável pelo prêmio) vai publicar um livreto com todos os textos premiados (deve sair uma edição online também, eu acredito). Só não deram um prazo ainda. Mas eles já liberaram para que cada um possa publicar seus próprios textos em páginas pessoais. Farei isso com o meu logo, logo aqui no Moviola.

  4. Antonio, não perca mesmo e volte para dizer o que achou.

    Exato Elizio, embora muitas coisas no filme poderiam ser mais direcionadas e explicitadas, a narrativa, da forma como está, é bem resolvida e não nos cansa. E não é difícil pensar em como a bordagem (humanista) do tema tenha lhe agradado.

Deixe um comentário para Gomes Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Arquivos