Cinema em transe

Se vivo fosse, o ilustre conterrâneo Glauber Rocha faria hoje 70 anos de idade. Se aos 20 já era ranzinza, imagine aos 70! Mas o que tinha de personalidade forte, de temperamento explosivo, também tinha de talento e vontade de revolucionar o cinema brasileiro. Não à-toa, foi o principal responsável pelo Cinema Novo, movimento que trazia novas propostas estéticas para nossos filmes, algo muito próximo ao neo-realismo italiano. Ganhou notoriedade no mundo e admiradores importantes (Martin Scorsese que o diga). Deus e o Diabo na Terra do Sol, seu segundo longa-metragem, é um dos ápices do movimento. E é sobre ele que tentarei escrever algo de valor em comemoração à data.

Deus e o Diabo na Terra do Sol (Idem, Brasil, 1964)
Dir: Glauber Rocha


Comecei a entender o cinema de Glauber Rocha quando me disseram que seus filmes não eram realistas, mas barrocos. Aquilo me inquietava demais porque a tentativa do cineasta em denunciar mazelas da nossa sociedade, em especial nesse filme as agruras da situação agrária do País e os elementos que a compõem, me pareciam propostas realistas. Mas o que importava era a forma como Glauber filmava: através da alegoria.

Acompanhamos a trajetória de Manuel (Geraldo Del Rey), vaqueiro que se encanta pelas promessas do líder messiânico Sebastião (Lídio Silva), a pregar a salvação da alma através da penitência e do sofrimento. Manuel, revoltado com a exploração intransigente do patrão, acaba por matá-lo e fugindo com a mulher Rosa (Yoná Magalhães) para seguir Sebastião. Depois, Manuel vai se juntar ao cangaceiro Corisco (Othon Bastos), que por sua vez vê como solução para o sertão o ato da violência. Além disso, há o matador de cangaceiros Antônio das Mortes (Maurício do Valle), contratado pela igreja e pelos coronéis, para eliminar Sebastião e Corisco.

Esses personagens são representativos de uma coletividade (como acontece em vários filmes do cineasta), e não seres individuais, o que já revela a intenção do filme: discutir a formação do sistema agrário brasileiro.

A exploração do povo sertanejo feita pelas elites agrárias e a concentração de terras (questões persistentes até hoje) são os principais fatores da pobreza e miséria das pessoas. Na tentativa de combater essa mazela, surge o messianismo religioso cego (representado por Sebastião) e a intransigência do cangaço (representado por Corisco), ambos tortos e equivocados. São esses os elementos de formação do Sertão enquanto região marcada pela desigualdade.

Junta-se a isso a grande influência da literatura popular de cordel (por vezes, narrador do próprio filme), expressa não só nos diálogos dos personagens como também na trilha sonora folclórica. Nesse sentido, há a figura do cego Júlio, símbolo dos cantadores de cordel, responsável por absorver e preservar as histórias do povo nordestino através da tradição oral.

Esteticamente, Glauber (e o Cinema Novo) põe a câmera na mão e privilegia uma narrativa documental, por vezes contemplativa, com longos planos, fotografia estourada, trilha sonora pomposa (além dos cordeis, há a música grandiosa de Villa-Lobos) e filmagens em ambientes externos. O texto apresenta algo de literal, não naturalista. A edição coroa uma proposta de renovação.

Para tanto, as influências de Glauber vão desde a literatura de Euclides da Cunha, os filmes iniciais de Nelson Pereira dos Santos, a singularidade e riqueza da cultura popular nordestina e até mesmo os westerns de John Ford, os quais Glauber admirava desde a infância. Por tudo isso, Glauber nos apresenta um filme barroco no sentido de que, a fim de confluir todos esses elementos, se utiliza da simbologia, da alegoria e do exagero para expor a situação do Sertão. É também o surgimento de uma estética, um estilo. Isso faz Ivana Bentes, talvez a maior estudiosa da obra de Glauber no Brasil, classificar o filme como “Ópera-Cordel”, ou se dizer tratar de “Brecht no sertão”. Sem dúvida, é uma grande honra para uma grande obra de nosso Cinema.

10 thoughts on “Cinema em transe

  1. Sempre que ministro uma oficina de teatro digo aos atores iniciantes que o estudo sobre o método de interpretação de Stanislavski é obrigatório. Agora vou dizer que o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol também é. O elenco deu uma aula de vivência de personagem. Fiquei bestificada. Não lembro de ter assistido um filme com tanto talento junto. Não concordo com Ivana, pois Brecht desenvolveu uma interpretação/direção bem mais gestual e o filme tem apenas exageros na diração,que achei cômico rs. Só não gostei do tempo do filme, as pausas são muito longas, mas isso é um detalhe diante dessa bela obra. Vale a pena!
    Bjo Rafa!

  2. Cara, sei que sua filmografia não é muito longa, mas preciso ver mais filmes dele. Até hoje vi Deus e o Diabo, Terra em Transe e O Dragão da Maldade. Gosto bastante de todos, especialmente dos dois primeiros.
    Mas, ainda assim, necessito ver os outros que já saíram em dvd, como Barravento e A Idade da Terra.

    Deus e o Diabo na Terra do Sol – *****
    Terra em Transe – *****
    O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro – ****

  3. Rapaz, tenho pensado seriamente em me trancar uma dia dentro de casa e fazer uma maratona Glauber, vendo um atras do outro: Deus e o Diabo, Barravento, Dragao da Maldade, Terra em Transe… Deixa a faculdade dar um descanso que faço isso.

    Acompanhou o Glauberidades?

    Abços!

  4. 70 anos? Até que ele não estaria tão velho assim… E eu nunca vi um filme sequer do Glauber Rocha. Me recordo que tinha perdido o interesse pelo seu cinema quando alguns cinéfilos dos quais sempre concordo com as opiniões de que o seu cinema é muito ruim. Ainda assim, eu tenho aqui em DVD “Terra em Transe”, que quero assistir em breve. “Deus e o Diabo na Terra do Sol” eu quase consegui também, mas acabei deixando para lá.

  5. Eu acho a filmografia do Glauber Rocha bastante interessante, mas bastante complicada também. Não são filmes fáceis. Eu, particularmente, gosto muito. Se tem um tipo de cinema que o Brasil acertou em fazer foi o Cinema Novo – olhar para nós mesmos, a nossa terra, a nossa gente. Eu acho o curta sobre o velório de Di Cavalcanti perturbador.

    É um diretor obrigatório para quem busca entender a arte cinematográfica.

    Abs!

  6. Patty, sabe o diretor Martin Scorsese, que fez Os Infiltrados e Gangues de Nova York (só para citar exemplos recentes)? Ele é fã do Glauber e sempre que vai começar um novo filme ele faz questão de exibir alguns dos filmes de Glauber para o elenco dele se inspirar. Acho que é bem isso que você falou, a vivência do personagem se revela na expressão de cada ator. Já essa questão de concordar ou não com a Ivana Bentes, eu não me meto porque não conheço o trabalho do Brecht a fundo. Em relação ao fato da narrativa do filme ser longa, acho que faz parte da estética da obra. E talvez estejamos muito acostumados com filmes ágeis que não permitem ao espectador um tempinho de reflexão. E isso é imprecindível nos filmes de Glauber.

    Valeu Fernando!

    Assino embaixo, Diego. O cara morreu jovem, podia ter feito mais barulho.

    Wallace, também gosto muito de Deus e o Diabo na Terra do Sol, embora Terra em Transe seja meu preferido do Glauber. Revi O Dragão esses dias e achei o máximo também. Um trabalho de direção arrojadíssimo.

    Ok Hélio, no mínimo será uma experiência interessante. Mas antes, deixe sua família de sobreaviso para o caso de você sair um tanto pertubado depois da multisessão. Mas vale a pena conferir o trabalho de nosso conterrâneo. Assisti a algumas coisas do Glauberidades, só que perdi a abertura com O Dragão da Maldade restauradíssimo. Mas vi o filme depois.

    Então Alex, tá na hora de conferir, mas vai com calma porque os filmes não são fáceis. Talvez por isso seus amigos cinéfilos não tenham gostado; não são para qualquer um. Terra em Transe é o filme dele que mais gosto.

    Realmente Dudu, os filmes dele exigem um tanto. E o Brasil precisava mesmo de um projeto de cinema interessado na nossa cultura, na nossa realidade, como o Cinema Novo. Movimentou muita gente e nos fez ser conhecidos no mundo. E esse curta sobre o Di é mesmo fascinante.

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