Cine Ceará – Parte V

NN (Idem, Peru/Colômbia/França/Alemanha, 2014)
Dir: Héctor Gálvez

 

Bela surpresa vinda do Peru, NN é um filme denso que perpassa por tema espinhoso: as consequências das lutas armadas contra os governos ditatoriais. Mas sem soar panfletário ou militante. Justo o oposto, é sóbrio do início ao fim, visto através dos olhos de alguém distante daquele assunto, mas que toma consciência das atrocidades vividas no passado por muita gente que ainda carrega cicatrizes não curadas.

É o caso de um antropólogo forense (Paul Vega) que lidera uma equipe de investigação sobre uma ossada encontrada na região andina. Dentre eles, os restos de um homem morto há mais de 20 anos e que nunca foi reclamado por ninguém. No bolso de sua jaqueta, a foto de uma jovem moça, também desconhecida. Uma mulher solitária (Antonieta Pari) passa então a nutrir esperanças de que aquele seja o corpo de seu marido desaparecido na época.

Non nomine (NN) é a denominação de corpos não identificados. É em torno dessa não identidade, que se torna busca constante, que NN sustenta atmosfera carregada, sem precisar gritar certa dor para o espectador. Não quer discutir entraves políticos, apontando culpados, preferindo observar as marcas deixadas através dos anos nas pessoas, numa sociedade que contabilizou mais de 60 mil assassinatos na época, fora os milhares de desaparecidos.

O filme desliza quando, em certos momentos, tenta verbalizar alguns debates morais e solidários que não vão muito adiante (como nas cenas da discussão da equipe forense na mesa de jantar ou a reunião de apoio aos familiares). Há também alguns conflitos desnecessários, como a investida amorosa do líder da equipe na colega de trabalho. Não chegam a comprometer o todo do filme, mas revela que sua maior força está na sugestão, no não dito, especialmente através da angústia e desolação que seus atores carregam.

Trata-se de um trabalho sensível, carinhoso com seus personagens, sem nunca relativizar suas dores. Há algo de polêmico no desfecho da história, uma maneira de conferir conforto, ainda que de maneira discutível moralmente. Não é um filme de questões e atitudes fáceis, mas é no intermeio entre dureza e delicadeza que encontra sua dignidade.

 

Cordilheiras no Mar: A Fúria do Fogo Bárbaro (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Geneton Moraes Neto

 

O jornalista e cineasta Geneton Moraes Neto lançou na competição do Cine Ceará um filme polêmico, no bom sentido do termo, tendo Glauber Rocha como epicentro. O documentário Cordilheiras do Mar: A Fúria do Fogo Bárbaro toca em assunto escorregadio e pouco investigado: o apoio de Glauber ao general Ernesto Geisel após voltar do exílio na Europa. Num momento em que a palavra de ordem era em repúdio aos militares, Glauber surgia como voz dissonante, mas seguro de suas posições, por mais que soassem desagradáveis para muitos.

Para além da centralidade como nome fundamental do Cinema Novo, Glauber demonstrava largo interesse em pensar a realidade do Brasil. De personalidade forte e atuante, discurso incansável e prolífico, não tinha receio de expor suas opiniões publicamente. Acabou sofrendo duro patrulhamento ideológico por conta dessa sua posição. Talvez a maior acusação do filme seja a de que foi a esquerda brasileira quem mais fortemente bradou contra o cineasta.

Em 1981, Geneton vivia em Paris e conheceu Glauber durante exibição de A Idade da Terra (1980) para os críticos franceses. Voltou ao Brasil e entrevistou algumas personalidades, como Miguel Arraes, então governador de Pernambuco, e Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, que confirmavam a nova linha de raciocínio que Glauber passou a defender. Geneton acabou guardando os arquivos, retomando-os agora, mais de 30 anos depois, e resolveu coletar várias outras entrevistas para fazer o filme e discutir a política brasileira a partir das posições polêmicas de Glauber.

Dada a trajetória de Geneton na GloboNews, entrevistador atuante, o filme soa como um trabalho de apuro jornalístico, ouvindo muita gente, contrapondo ideias e pensamentos. Porém, para soar mais “cinematográfico”, o diretor buscou investir também numa série de atos performáticos, usando pessoas próximas a Glauber recitando e interpretando falas e discursos que evidenciavam aquele novo pensar ideológico que deixou registrado aos quatro ventos.

Trata-se de uma saída interessante quando a figura do próprio Glauber com seus arroubos discursivos esteja talvez já tão saturada enquanto imagem. O filme corre o risco de soar gritado, tentando mimetizar certo trejeito glauberiano de fala, por mais expansivo que o cineasta baiano fosse por natureza. Tem algo de redundante também, o que tornaria Cordilheiras do Mar um filme melhor se fosse menos inflamado. Mas com esse tema, sobre essa personalidade, parecia irresistível.

 

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