Assunto de Família

Quando lançou seu filme anterior, O Terceiro Assassinato, Hirokazu Kore-eda estava enveredando por um caminho pouco explorado em sua obra (um caso policial que segue pelo drama de tribunal), com resultados medianos. A escolha de retornar à sua zona de conforto fez muito bem ao cineasta que, finalmente, conquistou a cobiçada Palma de Ouro no Festival de Cannes com Assunto de Família, mais uma pérola de sua filmografia a investigar as particularidades e representações da vida familiar.

Muito se fala em como o diretor japonês busca emular o cinema de Ozu, seu conterrâneo, por conta dos temas familiares e pela delicadeza no olhar, e Kore-eda é quase sempre destacado pejorativamente nessa comparação (afinal, Ozu é gigante). Mas Kore-eda tem seguido seu caminho com as próprias pernas, e a lacuna temporal que os separa aproxima seu cinema muito mais dos dilemas contemporâneos (algo que Ozu também fazia à sua época, mas a partir de lugares distintos). A família ganha centralidade em seus filmes, especialmente nos últimos anos, a partir de um sentido de formação, de reunião, de rede de apoio, e não como instituição calcada nos preceitos da tradição e dos laços sanguíneos como acontece em Ozu.

Num distanciamento do cinema do mestre japonês, é possível dizer que interessa a Kore-eda muito mais uma tentativa de dar corpo ao que significa esse agrupamento de pessoas num mesmo lar, uma quase busca ontológica por uma definição: afinal, o que é uma família? É exatamente ao redor dessa questão que gira Assunto de Família, a grande indagação que o filme amplia a partir de inusitado encontro. A história começa com a garotinha Yuri (Miyu Sasaki), três anos de idade, sendo “resgatada”, escondida, de um lar abusivo. Osamu (Lily Franky) e o pequeno Shota (Jyo Kairi) levam a criança para a casa onde moram com mais outras pessoas. Primeiro para dar comida, depois resolvem deixá-la passar uma noite e logo ela já é da família.

Adentramos, tal qual a garotinha, aquele espaço, centrado na figura da avó (Kirin Kiki), ao redor de quem orbita todos aqueles personagens – há ainda a esposa de Osamu e a jovem Aki (Mayu Matsuoka). A avó faz as vezes de matriarca desse ajuntamento de gente de origens distintas, mas que se dão bem e seguem compartilhando o mesmo teto. Na casa da avó, eles se amontoam, comem e dormem no mesmo cômodo adaptado. Cada qual exerce suas profissões – uns mais preguiçosamente que outros –, ainda que peguem carona na pensão da idosa e na ajuda que ela recebe das famílias para quem trabalhou. Osamu e Shota desenvolveram, ainda, técnicas muito espertas para realizar pequenos furtos de comida em supermercados e lojas de conveniência – e logo a pequena Yuri passa a ser aprendiz desses truques de despiste e roubo.

Sendo o Japão um país de regras sociais tão tradicionais, é curioso ver um lado contemporâneo mais “feio”, de gente desvalida economicamente, a classe desfavorecida que precisa dar seu jeitinho para sobreviver; um Japão longe da suntuosa metrópole high-tech, onde a pobreza é tão pouco explorada – no cinema, sobretudo. Mas longe de fazer uma apologia da miséria – porque os personagens, apesar da situação difícil, não são completos desvalidos e inúteis –, o filme busca criar um senso de irmandade e lançar questão sobre uma escolha de vida como aquela. A primeira e mais lógica resposta diz respeito às demandas emocionais de cada um, ainda que o filme seja muito discreto em tentar revelá-las.

É tocante, por exemplo, a maneira como Osamu angaria para si a figura de um pai em relação a Shota – ele chega mesmo a pedir que o garoto lhe chame de pai, assim sem rodeios. Mais do que para o garoto, a afirmação de tal relação é um anseio emocional do homem atrapalhado, que guarda em si a necessidade de ser alguém, de desempenhar um “papel” naquele universo – mesmo que o que ele tem a ensinar seja alguns métodos para esconder pacotes de macarrão e arroz na mochila –, sendo esta uma postura menos hierárquica – a da autoridade paterna – e mais afetiva, só que em benefício próprio. Assim como também é tocante a cena em que a avó, sentada na areia da praia, observa todos os demais se divertindo na beira do mar, e ali solta um agradecimento em voz baixa. É a graça de ter por perto quem sem gosta.

Assunto de Família é uma espécie de complemento dentro da obra do cineasta, a ganhar mais uma nova peça agora. Nossa Irmã Mais Nova, Pai e Filho, Depois da Tempestade, Ninguém Pode Saber (certamente sua obra-prima) são todas obras recentes do cineasta que invocam, de modos semelhantes, verificações sobre a construção de laços familiares e a ideia de pertencimento a um núcleo duro de relações de intimidade e cuidado.

Kore-eda trabalha na esfera do afeto, como de hábito, e nunca culpa seus personagens. Vivem livres de um olhar reprovador, mas nem por isso benevolente – nem tudo serão flores nesse caminho torto que eles insistem em seguir. O diretor sempre estará a postos para observá-los com ternura e apreço. Se como dizem por aí família é o conjunto de pessoas que tem as chaves da mesma casa, Kore-eda conduz essa máxima com primazia, explorando e potencializando os pequenos gestos cotidianos, sua maestria.

Assunto de Família (Manbiki Kazoku, Japão, 2018)
Direção: Hirokazu Kore-eda
Roteiro: Hirokazu Kore-eda

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