Annette

As vaidades do amor*

Antes mesmo das primeiras imagens aparecerem na tela, uma voz anuncia o espetáculo: “Senhoras e senhores, pedimos a sua completa atenção. Se quiser cantar, rir, aplaudir, chorar, bocejar, vaiar ou peidar, por favor, faça isso na sua cabeça. Pedimos que segure a respiração até o fim da apresentação. Não será tolerada a respiração de ninguém ao longo do show. Então, respirem fundo uma última vez”.

Assim se anuncia Annette, filme musical do cineasta francês Leos Carax, pedindo uma só tacada de respiro porque, realmente, o longa segue como uma torrente de situações estranhas que não se assemelham a um musical tradicional, apenas pelos números cantados. O cineasta faz questão de quebrar essa expectativa logo de início, brincando com o tom farsesco da obra e com esse tipo de ironia que não tem a intenção de endeusar o próprio filme.

Não poderia ser diferente de um cineasta como Carax, diretor de obras nada convencionais como Sangue Ruim e Holy Motors. Este é seu primeiro longa feito nos Estados Unidos, falado em inglês, e também seu primeiro filme do gênero, ainda que ele flertasse com o musical em filmes anteriores (há uma cena de interlúdio na trama em esquetes de Holy Motors que é memorável). Mas aqui ele abraça de fato o gênero, dando o seu toque de estranheza: o que começa como melodrama, se desenvolve para outros caminhos mais sombrios.

Na trama, um caso de amor louco evolui para uma história sobre as vaidades do amor e da obsessão pelo sucesso. Adam Driver vive um comediante de stand-up, daqueles de língua ferina e provocador, enquanto Marion Cotillard dá vida a uma cantora lírica, ambos adorados pelo público e pela crítica. Apaixonam-se, casam e logo terão uma talentosa filha, a Annette do título, que surpreende não apenas quando nasce, mas também quando desenvolve seus próprios dons artísticos.

Farsa e tragédia

Se Annette inicia com aquele letreiro provocador e também com um número musical em que todos os principais atores, o diretor e roteiristas tomam parte de uma marcha para saudar o início dos trabalhos – dentro e fora do filme –, logo percebemos que o longa  insinua seu jogo de cena assumindo o artifício, algo que será muito propício ao longo da trama, especialmente com a chegada da própria Annette.

Não há nada mais farsesco do que um filme musical: a trama se inicia, os personagens se apresentam, bem como os conflitos que eles terão que enfrentar, e do nada as pessoas começam a cantar e dançar em cena. Em Annette não é diferente, mas o filme se assemelha mais aos musicais franceses à lá Jacques Demy (Os Guarda-Chuvas do Amor ou Duas Garotas Românticas) em que os diálogos são musicados porque eles guiam a trama, mesmo que cantados.

Nesse sentido, Carax tem a contribuição fundamental dos irmãos Ron e Russel Mael, dupla que se apresenta desde os anos 1970 como os Sparks, duo pop que agora passa a ganhar maior visibilidade. Eles não só são responsáveis pelas músicas do filme, como assinam o roteiro, uma vez que as coisas não podem estar desassociadas. Além disso, aparecem no filme no número inicial e ainda fazem algumas pontas no decorrer da trama.

Apesar de tudo em Annette sugerir um tom de farsa, nenhum número musical é desperdiçado para servir a propósitos puramente estéticos ou mirabolantes. A maioria deles nem são necessariamente espetaculosos em termos de engenhosidade narrativa e técnica, antes servem para embalar o desenvolvimento dos personagens e de seus dramas pessoais. Um deles é exemplar nesse sentido: um personagem está prestando depoimento na delegacia e o interrogatório com a polícia é musicado apenas para dar conta daquela conversa e das informações que se extraem dali, nada mais que isso.

Se não há excessos aí, Carax compensa isso na sua trama de arroubos emocionais, algumas viradas surpresas no roteiro e tomadas de decisão que colocam em xeque a moral dos personagens, especialmente a do marido. A vida do casal muda muito com a chegada da criança, mas até antes disso já havia uma comparação interna sobre os rumos da carreira artística de ambos.

Baby Annette

Apesar do drama do casal ser o centro da história, não se pode negar que quem rouba a cena mesmo é a bebê Annette. A própria maneira como ela é representada pelo filme já sugere algo que mistura certa graça com bizarrice – e é preciso assistir ao filme para entender melhor o que eu digo. Mas é de se louvar a maneira como Carax assume o artifício e o integra de forma tão natural à narrativa.

Por vezes é desconcertante ver a criança na cena, mas logo nos acostumamos a isso dentro de um filme que contém uma série de outras coisas nada comuns – como os flashs que vemos de fatos da vida do casal apresentados como uma espécie de tablóide sensacionalista que xereta o cotidiano dos artistas.

Annette é também um filme sobre as vaidades da vida pública, sobre os desmandos da fama e de como o fracasso pode mexer com a cabeça das pessoas. Não apenas isso se coloca como questão na vida do casal, como a própria criança irá revelar suas habilidades artísticas e, assim, reconfigurar a ideia de sucesso no seio familiar já partido.

O que começa como uma história de amor quase improvável (duas personalidades diferentes, a se revelarem quando estão no palco: ele mais agressivo com suas piadas politicamente incorretas, ela mais delicada e com ares de diva erudita), logo revela o lado mais sombrio do ser humano, das presunções do amor e das obsessões pela aclamação do público. O filme parece seguir o curso comum da tragédia, mas passa também pela possibilidade de renovação dos nossos ídolos e dos verdadeiros talentos.

É uma viagem muito singular essa que Leos Carax e os Sparks nos apresentam. Annette pode apresentar altos e baixos nesse percurso, mas é difícil sair indiferente dessa experiência musical e farsesca, muito precisa na sua construção narrativa e ácida nos comentários que faz sobre o showbiz. Um completo espetáculo.

Annette (França/Bélgica/Alemanha/EUA/Japão/México/Suíça, 2021)
Direção: Leos Carax
Roteiro: Ron Mael e Russel Mael

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 02/01/2022)

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