A Crônica Francesa

Histórias frenéticas*

A Crônica Francesa estava prontinho para ser o filme de abertura do Festival de Cannes em 2020 quando o evento foi cancelado por conta da pandemia. O diretor norte-americano Wes Anderson preferiu guardar na gaveta seu filme por mais de um ano já que ele só foi exibido em Cannes na edição de 2021 há poucos meses e, agora, finalmente, chega aos cinemas comerciais.

Causa sempre sensação quando um novo filme de Anderson é lançado, não só pela veia autoral que promete um filme de visual único – colorido e esteticamente caprichado –, mas também por conta do elenco estelar que ele costuma reunir em suas obras. A Crônica Francesa possui isso tudo, mas é também um momento em que o cinema de Anderson peca pelo excesso, traído certamente por suas próprias ambições.

O filme faz uma bela homenagem ao jornalismo de sabor literário ao focar sua trama nos bastidores da uma revista americana publicada em uma cidade fictícia da França em algum ponto do século XX – a inspiração maior é a famosa revista The New Yorker. Na verdade, o filme se concentra em algumas histórias distintas que seriam as reportagens que alguns autores produziram para o periódico, cada uma com sua carga de curiosidade e excentricidade – tanto dos personagens retratados, quanto de quem as escreve.

Todas elas são pontudas pelo editor da revista, Arthur Howitzer, Jr., vivido por Bill Murray, que sente o fim da vida e espera que a revista encerre seus trabalhos quando esse dia chegar. Enquanto isso, ele segue estimulando sua equipe a descobrir e escrever as mais saborosas histórias que encontrar – metendo-se ele mesmo na feitura final delas. Tanto a pequena cidade francesa de Ennui-sur-Blasé quanto a própria redação do jornal são criados com certo charme vintage e nostálgico.

Marcas autorais

Como de costume nos filmes de Wes Anderson, a sofisticação visual é essencial para a composição do todo. Aqui o cineasta aproveita bastante as possibilidades que as diferentes histórias apresentam para viajar nos cenários e nas saídas visuais a fim de dar vazão para tanta criatividade.

A segunda das “crônicas”, aliás, é a melhor das histórias apresentadas. Uma marchand de arte (Tilda Swinton) nos coloca dentro de um presídio onde um detento (Benicio Del Toro) cumpre longa pena por homicídio e acaba desenvolvendo um raro talento para a pintura; na cadeia, apaixona-se pela guarda vivida por Léa Seydoux que também se torna a musa inspiradora de suas obras, pousando nua para ele.

O ritmo frenético com que essa trama é contada, envolvendo mais personagens estranhos e reviravoltas mirabolantes, dá o tom de todo o filme que segue um fluxo vertiginoso, de boas sacadas de roteiro (outras nem tanto), alguns momentos engraçados e aquele apuro estético sofisticado que já conhecemos de outros filmes do cineasta. No entanto, Anderson pesou a mão no timming. Na verdade, pisou no acelerador porque as histórias transcorrem todas com muita agilidade e um excesso de informação – visual e textual.

Por um lado, isso torna o filme de alguma forma dinâmico porque nunca sabemos qual o passo seguinte da trama, qual surpresa teremos a seguir ou qual nome de peso do elenco poderá entrar na próxima cena. Mas o filme perde também por apresentar de modo muito rápido personagens e situações que compõem, por vezes, tramas interessantes demais para logo serem esquecidas.

Nesse sentido, as demais histórias podem parecer cansativas e desgastadas porque o filme não consegue se concentrar muito nos seus pormenores. Frances McDormand “escreve” uma delas em que ela própria conhece um jovem estudante universitário (Timothée Chalamet) que se envolve em disputas políticas dentro da universidade. É inusitada a relação que cresce entre esses dois personagens, tão distintos entre si, mas o filme pouco tempo dá para nos habituarmos a eles.

Cores frias

É um tanto desapontador perceber que mesmo em um filme que reúne todos as melhores qualidades do cinema de alguém, o resulto é frustrante não por aquilo que falta, mas pelo que tem de exagero. Há de se questionar, inclusive, como um realizador que tem como marca o apuro visual e aquele senso estético super elaborado, consegue fazer um filme em que as coisas são jogadas tão rapidamente na tela que nem sempre é possível fruir toda a beleza e o capricho visuais.

Algo que sempre foi muito forte nos filmes de Anderson (e que salta aos olhos nos seus melhores trabalhos, como Os Excêntricos Tenenbaums e O Grande Hotel Budapeste, por exemplo) é que essa predisposição para compor quadros simétricos, super calculados e vistosos nunca foi sinônimo de frieza. Seus filmes, por mais estudados que fossem formalmente, nunca eram engessados; pelo contrário, tinham a capacidade de emocionar e/ou despertar sensos de aventura e lirismo em medidas muito generosas.

Quando chegamos à última história aqui, que envolve o cozinheiro de um departamento de polícia e o sequestro do filho de um homem rico e influente, contado pelo repórter vivido por Jeffrey Wright, já fomos bombardeados por muitas informações e ideias, para vir mais uma enxurrada delas. Essa trama é boa – e conta com um momento de animação que é ponto alto do filme –, tem uma série de reviravoltas interessantes, mas também já está marcada pelo cansaço.

A Crônica Francesa é tomado de cores, tem personagens com alto poder de cativar o espectador, com um elenco de peso, mas o resultado nunca chega a ter o tal calor humano esperado. As honras feitas ao bom conteúdo literário estão lá, filmadas com sofisticação e um quinhão de invencionice criativa que até tem espaço na crônica jornalística, mas aqui o criador exagerou na dose.

A Crônica Francesa (The French Dispatch, EUA, 2021)
Direção: Wes Anderson
Roteiro: Wes Anderson, Roman Coppola, Hugo Guinness e Jason Schwartzman

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 21/11/2021)

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