Uma Noite em Miami

Aconteceu naquela noite*

Na noite de 24 de fevereiro de 1964, reuniu-se num quarto de hotel o líder ativista Malcolm X, o lutador de boxe Cassius Clay, o cantor de soul Sam Cooke e o jogador de futebol americano Jim Brown. Nomes de peso e ícones da cultura e do movimento negro, acabaram tornando-se figuras representativas dentro de uma sociedade desigual e racista.

O encontro aconteceu na vida real, mas não se sabem detalhes do que eles discutiram ali. É em torno desse evento quase misterioso que Uma Noite em Miami…, dirigido por Regina King, ficcionaliza e elabora a interação entre os quatro figurões a partir de discussões raciais que envolvem a carreira e as posturas de todos eles. O filme foi lançado recentemente em streaming pela Amazon Prime Video.

Naquela noite, Clay havia acabado de se tornar campeão mundial pela primeira vez, despontando como um dos maiores lutadores de boxe do mundo, com apenas 22 anos de idade – o pugilista estava prestes a se converter ao islamismo, por influência direta de Malcolm X, e passaria a adotar o nome Muhammad Ali. Os demais já eram seus amigos e eles pretendiam se encontrar para festejar aquele momento de vitória.

Malcolm X, no entanto, tinha outros planos, e a noite de festa acabou se tornando um momento para que eles revisassem e discutissem suas posturas diante dos embates raciais que ganhavam cada vez mais corpo na sociedade norte-americana de então, marcada pela discriminação racial.

Basta lembrar que em 1964 seria aprovada a Lei de Direitos Civis nos Estados Unidos, condenando a segregação racial que imperava no país desde a abolição da escravatura. Tal lei só foi possível por conta da pressão dos movimentos civis e da mobilização da população negra em busca de seus direitos. Foi o ano também em que Martin Luther King receberia o Nobel da Paz por sua liderança no movimento. É nesse caldeirão efervescente que ícones da cultura negra mostram-se cada vez mais importantes.

Direção certeira

Uma grande surpresa do filme é o fato de ser dirigido por Regina King, mais conhecida como atriz – ela ganhou um Oscar recentemente de coadjuvante por Se a Rua Beale Falasse, de Barry Jenkins. Essa é sua grande estreia na direção de um longa, ela que já havia dirigido também diversos episódios de séries variadas para a TV.

E é um ótimo trabalho o que ela faz aqui em Uma Noite em Miami…, primeiro pelo peso de ficcionalizar os comportamentos e atitudes de figuras reais tão relevantes, sem dados concretos do que foi dito e discutido naquela noite; e também pelo fato do filme ser uma transposição de uma peça de teatro escrita por Kemp Powers, que assina ainda a adaptação do roteiro do filme.

Há sempre o risco, nesse tipo de transposição, da obra soar teatral demais, presa a uma estrutura que funciona muito bem nos palcos, mas que no cinema exige maior maleabilidade. Recentemente, pela Netflix, nos chegou A Voz Suprema do Blues, de George Wolfe, que apesar de ser um bom filme, possui certos problemas de ritmo que parecem vir de uma adaptação um tanto engessada. No polo inverso, um filme como Um Limite Entre Nós, dirigido por Denzel Washington, consegue trabalhar bem os espaços de cena e se desvencilhar da sua matriz teatral.

De certa forma, é o que King consegue fazer muitíssimo bem aqui (curiosamente, são ambos filmes dirigido por atores), dentro das possibilidades narrativas – a trama se passa quase toda dentro do quarto de hotel, a partir da interação entre os quatro personagens, com algumas saídas daquele ambiente e poucos flashbacks. Existe um ritmo de montagem muito preciso e um sentido de encenação com certo movimento dos atores em cena que dão muita fluidez ao longa.

Ajuda muito a sinergia existente entre os atores. Kingsley Ben-Adir faz um Malcolm X mais simpático – um tanto diferente daquele interpretado por Denzel Washington no filme de Spike Lee –, mas não menos enfático e politizado. Já Leslie Odom Jr. interpreta um animado Sam Cooke, às voltas com as possibilidades da fama, enquanto suas músicas são gravadas por outros artistas, quase sempre brancos, alcançando grande sucesso. Eles são os dois melhores em cena.

Negros no poder

Nesse encontro de amigos, os embates não demoram a aparecer. Malcolm – sempre ele – quer trazê-los para a realidade do país e suas lutas. Com sua habilidade de orador, tenta embalar o debate para colocar aqueles sujeitos, que são agora celebridades negras de destaque, dentro de um campo de atuação mais efetivo. Nesse sentido, o próprio filme utiliza o movimento de persuasão de Malcolm como um necessário chamado à consciência.

Enquanto Clay (vivido efusivamente por Eli Goree) vangloria-se por suas conquistas e reconhecimento no esporte, Brown (Aldis Hodge) já está percebendo a necessidade de fazer algo pela causa racial – entendendo mais claramente os danos da segregação que está longe de acabar, vide os acontecimentos recentes no país.

Do ponto de vista discursivo, o filme deixa muito claro este sinal que faz em prol da necessidade de mobilização para as pautas raciais. Ainda assim, Uma Noite em Miami… não cai na armadilha de se tornar um filme meramente panfletário ou com discursos simplistas sobre um tipo de atuação militante básica. É bem menos didático do que se poderia imaginar e muito mais compreensivo sobre a força de uma comunhão de pensamento que possa seguir um mesmo caminho de luta e resistência.

Apesar de brincar com uma espécie de revisionismo histórico, imaginando os pormenores daquele encontro inusitado, King está pouco interessada na veracidade exata dos fatos, no sentido literal, mas muito mais focada no sentido simbólico e discursivo que se configura ali.

O filme não deixa de ser uma resposta a seu tempo, não só por conta da eclosão do movimento recente do “Vidas Negras Importam”, mas por toda a mobilização em torno das questões raciais da atualidade. O longa acaba por perguntar, especialmente para aqueles que possuem algum prestígio cultural e/ou midiático: qual a sua contribuição para a nossa luta? O que, de fato, você tem feito para enfrentar o racismo? Uma Noite em Miami… é, assim, um belo chamamento.

Uma Noite em Miami… (One Night in Miami…, EUA, 2020)
Direção: Regina King
Roteiro: Kemp Powers

*Publicado originalmente no Jornal A Tarde (edição de 24/01/2021)

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