Retrato de uma Jovem em Chamas

Se o cinema de Céline Sciamma sempre esteve atrelado à discussão e representação do amor lésbico e da atração e cumplicidade femininas, especialmente focado no universo jovem, com pretensões de filme de formação, Retrato de uma Jovem em Chamas coroa um amadurecimento nesse tema. Não só porque lida com personagens mais adultas, mas principalmente porque compõe uma trama muito mais rica em nuances e apresenta uma real evolução na maneira de encenar todo um jogo de desejos que parece muito simples à primeira vista, mas esconde mais nuances do que se imagina.

O fio de trama é mínimo: uma artista precisa pintar o retrato de uma mulher. Estendendo esse argumento até o clímax do filme, Sciamma fala de desejos, cumplicidades, da paixão, do ser mulher (e enfrentar um mundo) e amar uma semelhante e das impossibilidades da vida, tudo isso sem buscar, em nenhum momento, criar teses ou defesas sobre tais questões, nem ser taxativa sobre nenhuma delas. O trabalho da diretora aqui é evidenciar o que está velado para as personagens, mesmo que o faça através de pistas muito mais sugestivas do que conclusivas e reveladoras.

Em fins do século XVIII, Marianne (Noémie Merlant) chega à propriedade de uma condessa que lhe contratou para pitar o retrato de sua filha, prestes a se casar; o retrato será ofertado a seu futuro marido. Heloïse (Adèle Haenel), no entanto, vive reclusa no local, acabou de deixar o convento para obedecer aos desígnios da família e se recusa a se deixar pintar. Marianne ganha a difícil tarefa de se passar por dama de companhia da jovem e pintar seu retrato às escondidas.

O filme já se aproveita dessa empreitada porque faz a câmera assumir o olhar observador de Marianne sobre os detalhes do corpo de Heloïse: o desenho das mãos, o formato das orelhas, o desgrenhado dos fios de cabelo, o contorno dos olhos e dos lábios. É esse exercício de visionamento atento, a ganhar ares de adoração, que o filme utiliza para insinuar a atração entre as mulheres, ainda que as coisas caminhem com muita parcimônia. Marianne precisa, aos poucos, conquistar a confiança da jovem, e não demora muito para que a relação entre elas evolua para um tipo de cumplicidade tácita.

Apesar de ter feito um filme sensual (a insinuação já começa no título), Sciamma nega qualquer tipo de erotismo que venha a se elevar como consequência última do encontro entre as duas mulheres. O erótico está presente no filme, mas menos como lascívia e mais como resposta natural do corpo, acompanhado de tantas outras questões que movem as duas mulheres – o que não deixa de ser um contraponto muito forte a um filme como Azul é a Cor Mais Quente, de Abdelatif Kechiche, em que a potência sexual era parte fundamental da atração entre as mulheres, e especialmente ponto de entrega e submissão para a personagem de Adèle Exarchopoulos em sua formação sexual e amadurecimento. Em Retrato de uma Jovem em Chamas, no entanto, isso se dá de modo diferente uma vez que as personagens estão em pé de igualdade, a artista nunca se sobrepõe à modelo, e seus caminhos são ambos balançados pelas (im)possibilidades de uma vida juntas, cada qual por seus motivos.

Nesse primeiro momento a trama também aproveita para inserir o jogo de olhares que passa a fazer parte da aproximação e do estudo simultâneo entre as duas mulheres (ninguém no cinema contemporâneo parece filmar olhares que se cruzam tão bem quanto Sciamma). Como passa a frutificar entre elas uma relação muito horizontalizada, até mesmo a altura dos olhares parece encontrar um mesmo vetor de encontro, um mesmo patamar de mirada mútua.

Os olhos nunca foram tão espelhos como o são aqui. Refletem os desejos e anseios, mas captam também os aprisionamentos sociais, as regras de conduta encontradas, por exemplo, em olhar e atitude severos da condessa (vivida por Valeria Golino), e o filme não deixa de ter em mente o destino final que guarda as personagens. Curioso pensar que o filme constrói esse ambiente caseiro essencialmente feminino (há uma terceira personagem que é a empregada e que ganha contornos relevantes na trama) como um lugar idílico, cercado pelas belezas naturais, espaço de comunhão de ideias e desejos que, por instantes, podem gozar de certa liberdade; aí já não é preciso nem mais domar os olhares.

Ao mesmo tempo, o gesto do olhar representa, em oposição, a perdição, tal qual o mito de Orfeu e Eurídice, explicitado e mesmo discutido pelas personagens na trama. Orfeu perdeu sua amada porque ousou olhar para trás para observá-la, contrariando as ordens de Hades, deus infernal que a tinha aprisionado; Orfeu ficou sem sua amada. Aqui, o olhar da artista, olhar do qual ela não pode se privar de lançar – porque precisa pintar –, é o que gera a feitura do quadro e que garante o matrimônio com o homem a quem Heloïse está prometida. Porém, em contrapartida, este exercício racional e ao mesmo tempo prazeroso do ver também produz memória (e produz cinema!). Marianne sabe que olhar significa deixar ir. Entre o desejo e a perda, Retrato de uma Jovem em Chamas encapsula uma dupla natureza – e, por que não, poesia – do olhar e ser olhada.

Retrato de uma Jovem em Chamas (Portrait de la Jeune Fille en Feu, França, 2019)
Direção: Céline Sciamma
Roteiro: Céline Sciamma

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