Quo Vadis, Aida?

Tragédia anunciada*

Quo Vadis, Aida? não ganhou o Oscar na categoria de Melhor Filme Estrangeiro no último domingo, mas certamente é um dos melhores candidatos daquele grupo (quem levou a estatueta foi o dinamarquês Druk – Mais uma Rodada). O filme já vinha recebendo atenção desde que estreou ano passado no Festival de Veneza – vencido, aliás, por Nomadland, Leão de Ouro no festival e que se consagrou na premiação do Oscar.

Já o filme da diretora bósnia Jasmila Žbanić é um reconto minucioso de um episódio real e cruel da Guerra da Bósnia: o massacre de cerca de oito mil bósnios mulçumanos na cidade de Srebrenica pelas mãos do exército sérvio no ano de 1995. O filme acaba de chegar, para compra e aluguel, em diversas plataformas virtuais (Now, Vivo Play, Sky Play, iTunes, Apple TV, Google Play e YouTube).

É, portanto, um filme duro e angustiante que segue um crescendo de tensão e desamparo sobre as milhares de vidas perdidas naquele massacre, tal qual uma tragédia anunciada. Assistimos a tudo isso pelo olhar de Aida (Jasna Djuricic), uma tradutora local da Organização das Nações Unidas (ONU) que acompanha as negociações entre as partes do conflito e, portanto, consegue estar a par das movimentações políticas e das decisões tomadas naquele momento.

É doloroso pensar que, no contexto da Guerra da Bósnia, desenrolando-se desde 1992, a ONU tinha firmado a cidade de Srebrenica como um território seguro, para onde muitos partiram em refúgio. Porém mesmo assim as forças de paz não foram capazes de impedir o avanço das tropas sérvias sobre o local e sua gana em acabar com a vida daqueles habitantes. Os principais alvos eram os homens, com o claro intuito de impedir que eles pudessem se juntar ao exército bósnio e promover uma força de resistência contra os sérvios.

O filme concentra-se poucas horas antes do massacre quando diversos moradores da cidade buscam abrigo em um galpão sob o comando da ONU nos arredores da cidade. No entanto, o espaço não suporta tantas pessoas, e milhares de cidadãos bósnios ficam do lado de trás das cercas aguardando uma oportunidade de proteção. Enquanto isso, o exército sérvio dirige-se ao local, deixando já um rastro de morte por onde passa, o que anuncia uma tragédia que não pode ser contida.

No olho do furacão

Quo Vadis, Aida? passa como um exercício de reconstituição histórica competentíssimo. Além de jogar luz sobre um evento tenebroso de um passado não muito distante, evita um lugar de mero denuncismo diante de tantas atrocidades cometidas naquele contexto – o massacre em Srebrenica foi considerado o maior genocídio perpetrado em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial.

Por se concentrar em um episódio específico dentro daquele conflito, sem a pretensão de fazer um relato macro da tragédia, o filme consegue ser pontual em certos detalhes, situações e movimentações. Aida é uma personagem privilegiada por estar próxima daquele centro de decisões, mas como moradora local vê a tragédia se formando à sua frente sem poder interferir muito.

Ao mesmo tempo, ela teme pela situação do marido e dos dois filhos, que ela consegue trazer para dentro do abrigo. A atriz Jasna Djuricic é uma presença fortíssima no longa, fazendo o seu trabalho, mas também tendo de escolher entre seus amigos e conhecidos locais quem ajudar porque não há lugar para todos.

A diretora Jasmila Žbanić, de 47 anos, ela mesma uma testemunha e sobrevivente daquele período de guerras, vivendo na capital Sarajevo – palco central da guerra, também devastada nos conflitos que se seguiram com a dissolução da antiga Iugoslávia –, conta que o Genocídio de Srebrenica sempre foi um fato marcante na sua vida e memória.

A escolha de uma protagonista feminina para esta história ainda faz pensar nas muitas mulheres – mães, esposas, irmãs – que sobreviveram ao massacre em sua maioria, tendo que ver seus maridos, filhos e irmãos partindo para a morte. Grande parte dos corpos das vítimas fuziladas foram enterrados em valas comuns, e até recentemente restos dos corpos e vestígios têm sido encontrados e reconhecidos geneticamente por esses familiares remanescentes.

Para onde ir

O drama familiar de Aida passa do contexto macro da situação para a dimensão íntima e familiar, à medida que a situação vai ficando cada vez mais perigosa e a mulher tenta, a todo custo, encontrar uma forma de esconder e salvar marido e filhos – como funcionária a serviço da ONU, sua segurança está garantida, mas a dos demais não.

Ao se concentrar nesse microcosmo familiar, não deixa de ser menos representativo como uma tragédia histórica devasta diretamente o seio da família. E com isso tem-se a dimensão do drama social que se abate sobre toda uma sociedade – naquele caso, de recorte especificamente étnico e também religioso, uma vez que os muçulmanos eram um dos grandes alvos do exército sérvio.

Apesar de lidar com essa personagem fictícia, o filme não se furta a encarar as figuras históricas que fazem parte do conflito. O mais icônico deles é o general sérvio Ratko Mladic (interpretado por Boris Isakovic), figura influente que conduziu friamente o massacre. Mladic ficou muito tempo foragido depois do fim dos conflitos; foi capturado em 2011 e somente em 2017 foi condenado à prisão perpétua.

A expressão “quo vadis” vem do latim e significa “aonde vais”, marcando passagens bíblicas. Ao trazê-la para o título, a cineasta coloca em evidência o lugar de impotência dos indivíduos diante da crueldade humana. Afinal, como é possível fugir de um massacre, de uma guerra? O que fazer após isso, depois de perder entes queridos? E mais que isso: o que será desse novo país agora? As respostas podem ser difíceis de encontrar, mas certamente elas passam pela revisão histórica e pela manutenção da memória.

Quo Vadis, Aida? (Bósnia-Herzegovina/Áustria/Romênia/Holanda/Alemanha/Polônia/França/Noruega/ Turquia, 2020)
Direção: Jasmila Zbanic
Roteiro: Jasmila Zbanic

*Publicado originalmente no Jornal A Tarde (edição de 02/05/2021)

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