Olhar de Cinema: Estilhaços

Se o cinema de arquivo está muito ligado à ideia de família e de memória a partir de um encontro com imagens que carregam muito de intimidade e retrato de época, a produção argentina Estilhaços é um ótimo exemplo de como esse subgênero pode ser atravessado pelo registro histórico, não apenas como pano de fundo da vida familiar que sempre estará atrelado à dimensão política e contextual de onde se vive. Mas nesse caso, o que se registra aqui é um acidente industrial que marcou uma província argentina nos anos 1990 e, mais especificamente, a família da diretora Natalia Garayalde que na época, com 12 anos, registrou tais acontecimentos.

O grande tema do filme é o acidente, seu ponto de partida, mas o subtexto continua sendo a família. Garayalde consegue fazer esse equilíbrio de modo muito perspicaz, talvez até mesmo invertendo uma lógica comum a esses filmes: ao invés da vida familiar ser reflexo de uma época, é a tragédia histórica inserida num dado tempo e espaço que ressignifica a trajetória da família.

O acidente interfere não só no círculo familiar da diretora, mas em toda a comunidade de Rio Tercero, pequena cidade situada na província de Córdoba onde, nos arredores não muito distantes, situa-se uma fábrica militar de munições. Um dia, um acidente causa uma explosão nas dependências da fábrica e diversos estilhaços e materiais químicos são lançados ao ar, atingindo a cidade, as casas e as pessoas. Nada nunca mais será o mesmo para aquela comunidade (nesse sentido, assim como Um Verão Comum, de Kamal Aljafari, mais do que um filme de família, este é um filme de vizinhança, calcado no uso de arquivos pessoais, mas com um certo senso de coletividade).

O filme é muito feliz por estar de posse de um material tão rico que se equilibra entre as imagens de convívio íntimo e aquelas que dão conta de dimensionar os detalhes do acidente. São realmente impressionantes as cenas gravadas nas ruas, de dentro de um carro, no momento em que o acidente está em curso e os estilhaços estão sendo lançados na cidade, causando tumulto, correria e confusão, vislumbrando ao longe uma pesada nuvem escura subindo aos céus.

A família Garayalde segue registrando os desdobramentos do acontecimento, desde os estragos feitos na casa deles e nos arredores, as investigações locais que atraem a atenção pública e os meios de comunicação da Argentina, os embates políticos que se acentuam, incluindo a vinda do então presidente Carlos Ménen ao local para acalmar a população que insistia numa versão de que o desastre não tinha sido necessariamente acidental. Há até a inserção de um vídeo do funcionário da fábrica acusado de ser o responsável pelo acidente tentado provar sua inocência.

O filme consegue ser muito completo no âmbito das circunstâncias gerais que envolvem o caso, mas ele se completa mesmo como narrativa ao encerrar um ciclo a partir das consequências diretas do acidente no seio familiar, anos depois do ocorrido. Nesse ponto, Estilhaços assume um posto mais convencional (e confessional) dentro do filme de arquivo, mas nem por isso menos potente como forma de rearranjar as memórias (e também as tragédias pessoais que são apenas reflexo daquelas de cunho histórico). As imagens são também estilhaços, e essas sim sobrevivem ao tempo.

Estilhaços (Esquirlas, Argentina, 2020)
Direção: Natalia Garayalde
Roteiro: Natalia Garayalde

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