Mostra Tiradentes: Vermelha

Em meio a filmes com pretensões políticas e discussões elevadas em vários níveis (sociais, humanos, históricos, íntimos), Vermelha é uma espécie de corpo estranho dentro da programação da Mostra Aurora, competitiva de longas-metragens que apostam no risco, na ousadia, na radicalização da linguagem. Se o caminho seguido pelo filme não adere a esse tipo de discurso frontalmente, isso não o torna menos político que os demais, mas não deixa de ser curiosa a presença dele ali no meio daqueles filmes. O fato de ter vencido o prêmio principal da Aurora só reforça a maneira como uma abordagem menos previsível, também original, é justamente o que confere sua força.

Vermelha é um estudo muito particular sobre o cotidiano a partir da rotina de uma família na periferia de Goiânia. Trata-se da própria família do realizador, que reinventa uma ficção com um punhado de personagens pitorescos e engraçados, desdobramento de seus próprios pais, irmãos e vizinhos, que vivem uma vida quase interiorana, longe da movimentação do centro urbano de uma metrópole como Goiânia.

O pai, Gaúcho, faz pequenos trabalhos de construção, tem uma dívida com um conhecido local. Junto com o amigo Beto, briga (inclusive entre si) e partilha conversas prosaicas, enquanto as mulheres da casa vivem suas vidas em calmaria e pequenos gestos de cumplicidade nos interiores. Tudo muito calcado em um naturalismo quieto, harmônico, que por vezes ensaia uma fuga iminente para algo diverso (e mesmo quando isso se concretiza minimamente, mas nunca a causar graves rupturas, o tom continua estranhamente o mesmo).

O realizador ressignifica o filme amador, caseiro, feito com os próprios pais e no seio do ambiente em que vive – tal qual um André Novais Oliveira goiano –, mas a partir da chave da comédia casual e do nonsense. O filme até demora um tanto para firmar sua aposta nos acontecimentos do cotidiano, sem grandes pretensões e sem ligações narrativas complexas. Em certo sentido, lança expectativas para algo que promete fazer a narrativa engatar outra marcha (como no eixo dramático, se assim podemos definir, da raiz de uma árvore que precisa ser arrancada e levada para casa), mas que funciona apenas como despiste.

Ao mesmo tempo, ao frustrar esse “fio narrativo”, abortando qualquer tipo de desdobramento mais sério e que tenha importância naquele fiapo de trama, o filme estaria apresentando sua própria carta de princípios, seu modo muito particular de enxergar e lidar com o extrato narrativo que constrói ao redor daqueles personagens e sua movimentação. Mas isso não necessariamente o livra de certo esvaziamento, em especial na primeira metade, onde muito do que vemos terá pouca importância mais à frente (o “drama” da raiz, por exemplo), o que sempre corre o risco de banalizar a história.

De qualquer forma, o diretor-roteirista extrai dali uma graça muito particular, gerando momentos genuinamente hilários e outro que parecem esbarrar na própria demora do filme em solidificar sua própria narrativa – em que medida podemos levar a sério a conversa dos amigos ao pé da fogueira ou aquilo tudo não passa apenas de um mero subterfúgio para o riso? – porque é, de fato, muito engraçada.

Essa desimportância, essa contenção de sentidos e propósitos maiores, está impressa até mesmo no título do filme: é o simples nome da cachorra da família – que não é, de forma alguma, um personagem desimportante. Existe até algo de pitoresco em sua “biografia”, pois ela chegou a ser resgatada por um vizinho quando ficou ilhada numa pedra depois de surpreendida pela enchente de um rio. Fora isso, é uma cachorra comum. Mais um vez, o não importante, o detalhe, aquilo que não estava sendo visto e mirados pelos filmes, ganha destaque como centro de força aqui.

Ao mesmo tempo, existe ali um emaranhado de situações que dão conta de um estilo de vida, de modos de fala e comportamentos, legitimamente brasileiros, um Brasil mais profundo, longe de estereótipos e pulsante, a seu modo bem particular. Vermelha é o retrato de um Brasil profundo, sem querer ser esse retrato, sem querer perfazer uma colocação mais séria, reveladora, totalizante sobre o que filme poderia representar; apenas degusta de seu espaço (um “alqueiro” ou hectare?) e se movimenta com ele com destreza, também não sem tropeços, mas ainda assim pulsante.

Vermelha (Brasil, 2018)
Direção: Getúlio Ribeiro
Roteiro: Getúlio Ribeiro

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Arquivos