Mostra Tiradentes: Seus Ossos e seus Olhos

“Uma palavra é uma forma maciça”, diz o personagem interpretado por Caetano Gotardo, também diretor e roteirista de Seus Ossos e Seus Olhos, filme que deu início à Mostra Aurora aqui em Tiradentes. Trata-se de um começo de competitiva bem motivador, ao mesmo tempo difícil porque o filme de Gotardo é dos mais exigentes. Há muitos elementos elencados e intrincados, um filme que se abre para muitos modos de enxergar e pensar, com alguns pontos chaves capazes de guiar uma compreensão. O mais evidente deles é o do uso da palavra, ou antes, a força que a palavra ganha como modo de dar conta, ou concretude, das experiências dos sujeitos no mundo (ou no Brasil de hoje). A palavra como forma maciça.

Um segundo elemento, entrelaçado a isso, é uma investigação muito peculiar sobre o corpo. Somados eles não são mais do que desdobramentos muito reconhecíveis no cinema do diretor que chega aqui a seu segundo longa-metragem, além dos diversos curtas colecionados nos últimos anos. As palavras tentam dar forma a muita coisa nesse filme e o esforço maior é o de encontrar a tradução exata, o verbo correto, um cabimento. Assim como o corpo, que de alguma forma também se encontra deslocado, de alguma maneira incompleto.

O diretor-ator interpreta João, um cineasta que trava encontro com uma série de pessoas ao longo do filme e com elas conversa sobre muita coisa, funcionando quase sempre como mero ouvinte – e seria então um coletor de histórias e depoimentos – e menos como interlocutor ativo. A maioria das conversas pontua relacionamentos, encontros e desencontros, a partir de aproximações afetivas, das mais fortuitas às mais intensas. E desde o início fica evidente uma sensação de angústia e mal estar muito grande compartilhada por todos os personagens, um quase sufocamento que parece cessar um pouco através da liberação da palavra e do corpo.

A exata primeira cena do filme é um close do rosto de Caetano-João-ele-mesmo falando ao telefone com uma expressão exasperada, expurgando na sua fala um sentimento de raiva. Saberemos mais tarde que essa conversa deve ser falsa, fingida, e o filme joga o tempo todo com uma não pureza da realidade, especialmente quando, mais ao final, o longa se desdobra para a metalinguagem e descobrimos haver um filme dentro do filme, repetindo, inclusive, cenas que já tínhamos visto anteriormente. De qualquer modo, a cena inicial transmite uma ideia de ensaio da fala, uma busca pelo modo mais assertivo de se expressar para dar cabimento (dar corpo) ao sentimento.

Em outra cena, o personagem se desdobra todo para encontrar uma posição exata para deixar no chão, escorado ao sofá. Mais adiante, quando João encontra seu namorado, os dois na cama, tentam encontrar a melhor posição para encaixar os corpos, para dar cabimento ao enlace dos dois. Em todas essas situações, e em tantas outras espalhadas pelo filme, a busca por uma exatidão da expressão – falada ou corporal – é o que move os personagens, o que os acalmaria, cessaria a tensão.

Seus Ossos e Seus Olhos é, portanto, uma aventura intensa de desejos e memórias. Há muito mais a se explorar, e talvez o próprio filme se encarregue de somar questões, pensamentos e inquietações que nem ele mesmo consegue dar conta ao fim de tudo. É sempre um risco esse de estender os diálogos e as cenas porque eles podem apontar para muitos caminhos, cada qual demandando suas próprias engrenagens e termos. E fazer caber corpo e palavras em tantos anseios seja tarefa por demais dispendiosa. O filme sofre desse desequilíbrio na segunda metade, tornando-se ainda mais difuso, o que também não deixa de revelar a abertura a que ele se propõe, estando tão pouco encerrado em um modelo pré-eleito. De qualquer forma, nada soa gratuito e prevalece, até o fim, o mesmo conceito: a forma maciça das palavras e o corpo tentando caber nas coisas.

Seus Ossos e seus Olhos (Brasil, 2018)
Direção: Caetano Gotardo
Roteiro: Caetano Gotardo

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