Mostra SP (curtinhas): Aranha / A Morte do Cinema e do Meu Pai Também / A Saída dos Trens / O Despertar de Fanny Lye

Aranha

É uma pena que Andrés Wood não tenha aprendido com seus conterrâneos chilenos uma sutileza que faz toda a diferença quando se faz um filme sobre embates políticos datados e, agora, revistos pelo tempo: o de criar protagonistas que não tomem lados, que não defendam ou enfrentem uma causa qualquer que seja, ainda mais se elas hoje parecem tão indefensáveis como a aposta num regime de opressão (apesar de que não falta quem ainda acredita nisso). Pensemos, por exemplo, na trilogia dirigida por Pablo Larraín (Tony Manero, Post Mortem e No), todos filmes que confrontam o passado brutal do Chile a partir de personagens que não estão levantando nenhuma bandeira política; são personagens neutros, o que não significa que seus filmes assim o sejam. Com Aranha – e como muitos filmes por aí que panfletarizam o debate político –, o diretor busca jogar luz sobre o movimento de extrema-direita que se mobilizou na luta contra a esquerda e a favor do golpe a Salvador Allende. Mas o tratamento beira tanto o maniqueísmo – por vezes tão fácil pintar os inimigos com tintas carregadas e acusatórias – que o embate político perde a sua força. Aranha trabalha também em dois tempos, resgatando no presente figuras que estavam inseridos naquela luta e hoje são escroques burgueses da pior espécie, lutando para sustentar os privilégios que historicamente lhes caíram nas mãos como legados. Mas nessa tentativa de equilíbrio temporal, o filme enfraquece os embates entre os personagens no presente, muito mais interessantes e cheios de camadas, mas com pouco tempo de tela para serem bem desenvolvidos em suas contraditórias camadas, inclusive desperdiçando o talento e a energia de uma atriz incrível como Mercedes Morán.

Aranha (Araña, Chile/Argentina/Brasil, 2020)
Direção: Andrés Wood
Roteiro: Guillermo Calderón

 

A Morte do Cinema e do Meu Pai Também

É possível acompanhar com certa graça alguns filmes que passeiam por esses entremeios da ficção e do documental, acrescentando camadas novas à medida em que as coisas transcorrem. A Morte do Cinema e do Meu Pai Também é um desses bons exemplos, muito embora não pareça haver nada de muito espetacular nesse gesto de invenção (questionável em muitos sentidos) e elaboração labiríntica da narrativa. Aqui temos um cineasta que está fazendo um filme dentro do filme, usando sua família como atores e atrizes, mas que estão todos atuando versões próximas de si mesmos, enquanto a família lida com a doença aparentemente irrecuperável do patriarca. Enquanto prenuncia o fim, o diretor Dani Rosenberg joga o jogo da encenação, arma as regras na medida em que o jogo é jogado (ou é obrigado a alterá-las no meio do caminho), mas, acima de tudo, acaba por reforçar os laços familiares, as conexões e vínculos que estão presentes ali, atados de modos muito díspares e com forças muito distintas, sem precisar criar uma declaração efetiva (e afetiva) sobre quem quer que seja, apesar de elas estarem lá de algum modo.

A Morte do Cinema e do Meu Pai Também (The Death of Cinema and My Father Too, Israel, 2020)
Direção: Dani Rosenberg
Roteiro: Dani Rosenberg

 

A Saída dos Trens

Filme irmão de A Nação Morta, também do Radu Jude, desta vez acompanhado do historiador Adrian Cioflâncã, A Saída dos Trens é mais uma investigação sobre o antissemitismo romeno, em pleno domínio ideológico do nazismo no meio da Segunda Grande Guerra, desta vez destacando o brutal episódio do massacre de judeus na Romênia em fins de junho de 1941. Há uma sequidão cortante na rigidez formal do filme que se faz através de fotos e documentos das muitas vítimas daquele episódio, acompanhados de depoimentos encontrados dos próprios mortos ou de familiares, sobre o caso ou sobre as perseguições que eles sofriam. É um grotesco inventário de mortes e assassinatos, que faz o esforço não só de humanizar aqueles indivíduos que perderam suas vidas e tiveram as de suas famílias destroçadas, mas também busca questionar o ódio arraigado do povo romeno que não apenas ajudou os soldados alemães no massacre, mas também dele participou ativamente como delatores e executores, em alguns casos matando com suas próprias mãos sujeitos inocentes. Em certa medida, o filme lembra o trabalho que Svetlana Aleksiévitch faz, no âmbito literário, do resgate oral de histórias brutais e violentas que compõem a História que se quer apagar da sua nação.

A Saída dos Trens (Iesirea Trenurilor din Gara, Romênia, 2020)
Direção: Radu Jude e Adrian Cioflâncã
Roteiro: Radu Jude e Adrian Cioflâncã

 

O Despertar de Fanny Lye

Salta aos olhos a precisão narrativa do inglês Thomas Clay, ele que tem uma curta carreira no cinema, sendo este seu terceiro longa-metragem, habilidoso em contar bem contado uma história que por si só já é provocadora e à frente do seu tempo (a trama é de época, mas a mensagem não poderia ser mais moderna). Pois a protagonista do título vai passar por uma provação que mudará seu destino e sua forma de enxergar o mundo, e mesmo isso tem um tratamento muito mais maduro e pouco convencional. Fanny Lye (a ótima Maxine Peake) é uma mulher que vive com o marido e o filho numa pequena propriedade rural inglesa em meados do século XVII, submissa, recatada e do lar, casada com um rígido pastor. A vida de todos eles viram do avesso com a inesperada chegada de um jovem casal à propriedade, cercados de segredos e mentiras que parecem estampados em suas caras. Serão muitos desdobramentos e reviravoltas que se anunciam a partir daí, mas o que vale dizer é que Clay, também roteirista, compõe um arco de transformação que coloca em xeque os valores mais tradicionais daquela sociedade de uma forma inesperada, intensa e questionadora para fazer com que o processo de transformação da protagonista não seja meramente discursivo, mas inevitável diante das experiências emocionais que todos eles vivenciam durante os poucos dias que passam sob o mesmo teto.

O Despertar de Fanny Lye (Fanny Lye Deliver’d, Reino Unido/Alemanha, 2020)
Direção: Thomas Clay
Roteiro: Thomas Clay

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