Memória ativa

Vocês Ainda Não
Viram Nada!

(Vous N’Avez Encore Rien Vu, França/Alemanha, 2012)
Dir:
Alain Resnais

Alain
Resnais, 90 anos, cineasta vigoroso. É o que não cansa de comprovar esse seu
mais novo filme, algo que nem precisava ser atestado, vide exemplos recentes de
maturidade e vivacidade fílmica, como em Ervas
Daninhas
e Beijo na Boca, Não!. Vocês Ainda Não Viram Nada é como um
prolongamento evidente de um trato elegante com o fazer cinema, mais um
trabalho de encenação caprichado, num filme cheio de camadas e conduzido com
uma leveza incrível. Resnais parece dirigir brincando.
O
diretor reúne ainda um time de atores sensacionais para criar um verdadeiro
jogo de cena criativo em que seus personagens passam a dominar a narrativa pelo
simples ato de lembrar. Poucas vezes o ser ator foi celebrado com tanto carinho
como é aqui nesse filme perpassado pela memória.
Quando
o diretor de teatro Antoine d’Anthac (Denis Podalydès) morre repentinamente, um
grupo de atores de sua confiança recebe uma mensagem sua preparada previamente
para que eles compareçam a sua casa a fim de assistir a uma projeção de sua
peça Eurídice, encenada por um grupo teatral formado por jovens. Eles terão que
aprovar ali se aquela nova versão ficou realmente boa. Está montado o palco de
um misterioso jogo que, se esconde algo de nebuloso pela forma teatral mesmo
pela qual se dá, logo ganha novos ares.
É
assim que Sabine Azéma, Pierre Arditi, Anne Consigny, Lambert Wilson, Michel
Piccoli, Mathieu Amalric, Anny Duperey, Hippolyte Girardot e outros,
interpretando a si mesmos, vão adentrando na peça, tomando para si os
personagens que outrora eles mesmos encenaram para d’Anthac, ultrapassando
barreiras espaciais e temporais. Todo o filme, e mesmo aqueles que se projetam
na tela que eles assistem, parece se curvar a essa nova performance que ali se
estabelece.
Assim
como a personagem de Emmanuelle Riva em Hiroshima,
Meu Amor
transportava-se para outro espaço-tempo a partir do leve movimento
de uma mão, os atores agora, diante das falas que eles tão bem conhecem, ativam
em sua memória os tempos idos em que eles estiveram no palco. E nada disso é
previamente proposto, mas antes um movimento quase que automático por parte de
quem recorda, perpassando pela lembrança e pelo afeto. É mais uma bela
celebração da memória, toda cheia de liberdades poéticas que ultrapassam o
registro do naturalismo, como sempre foi a vocação do diretor.
Resnais
domina o espaço como ninguém. Não só sua câmera passeia candidamente em busca
do ângulo mais apropriado para dar conta dos reveses dessa história, como os
personagens/atores se deslocam, nesse espaço-tempo de que agora são donos, a
fim de resgatar e defender seus personagens/personagens. 

É interessante notar como, meras peças de um jogo que
vai sendo lhes apresentado sem regras definidas, aquelas pessoas ali passam a
dominar a narrativa, reconstruindo e ressignificando (mais que meramente
repetindo) a trágica história de amor de Eurídice, apaixonando-se perdidamente
por Orfeu, por acaso, num dia que será tão trágico. Para nós que assistimos, é
um dia de deleite.

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