Inferninho

O título do filme pode indicar uma obra com ares de cinema marginal, pirado e tresloucado, pode soar como algo pesado e perverso, mas o certo é que Inferninho é dos filmes mais amorosos a chegar em cartaz nas salas comerciais este ano. Esse cinema de afeto tem sido muito praticado na recente filmografia brasileira do dito cinema independente, e os diretores Guto Parente e Pedro Diógenes fazem jus a esse tipo de narrativa. O afeto aqui se torna grito de resistência em tempos de intolerância.

A dupla de diretores cearenses fazia parte do coletivo Alumbramento Filmes, responsáveis por obras de baixo orçamento e alto teor de experimentação, sempre com boa circulação em festivais de cinema, dentro e fora do Brasil. Essa seria outra pista a indicar em Inferninho um trabalho de difícil assimilação, algo que também não procede. Ou seja, o filme dos diretores é uma grata surpresa, muito consciente do seu lugar de fabulação, apostando na irreverência e na dinâmica dos atores em cena para contar uma estranha história de amor e companheirismo.

O filme se passa todo dentro de um bar/boate chamado mesmo de Inferninho. Personagens excêntricos fazem parte do seleto grupo de frequentadores do lugar, desde um homem vestido de coelho, meio gago, passando pelos boêmios de cara embriagada e fantasiados, até a performer Luiziane (Samya de Lavor) que canta no bar todas as noites. No comando do local está Deusimar (Yuri Yamamoto), claramente uma mulher trans, à frente do negócio que era de seu pai, tudo que a família lhe deixou.

Financeiramente, as coisas não estão nada bem para os negócios de Deusimar, os credores não lhe dão descanso. Duas visitas inesperadas abalam o cotidiano desse ambiente: primeiro chega ali o marinheiro Jarbas (Demick Lopes), homem bem apessoado por quem Deusmiar logo se encanta; ele passa a alugar um quarto nos fundos do bar e o envolvimento com a dona do estabelecimento segue com facilidade. No entanto, ele guarda certos segredos.

Passa por ali também um misterioso homem de negócios, representante do governo do Estado, com uma oferta robusta em dinheiro para a desapropriação do local: um amplo estacionamento será construído para servir a um centro de entretenimento que já está sendo projetado na região. Com isso, aos conflitos pessoais dos personagens somam-se um maior: a possibilidade do Inferninho deixar de existir.

Toda a construção narrativa do filme passeia pelo cartunesco, por certo exagero visual – o bar é como um microcosmo de um lugar idílico, celebrado em ambiente retrô, longe da realidade crua do centro urbano. A luz artificial e o visual kitsch do bar ajudam a dar um toque de melodrama oitentista, numa estética à lá brega-chique. O ar teatral é sentido o tempo todo no longa, do gestual dos atores até a predisposição para que as ações e acontecimentos se dêem de modo pontual e concentrado em poucos espaços.

E isso não é gratuito. Inferninho foi todo pensado e escrito pelos diretores em parceria com o Grupo Bagaceira de Teatro, também sediado em Fortaleza. Os atores são, em sua maioria, provenientes do grupo e participaram até mesmo da feitura do roteiro que ia amadurecendo e se completando durante os ensaios.

Isso faz de Inferninho um trabalho coeso de encenação, criando e administrando um universo próprio onde acreditamos que aqueles personagens coexistem e trafegam com certa leveza, ainda que carreguem seus atritos e percalços – eles brigam bastante entre si, mas nota-se ali uma constituição quase familiar na maneira como se acolhem, especialmente na adversidade.

Inferninho é um belo filme que celebra o afeto entre seus personagens, porém nunca é condescendente com eles. O filme equilibra muito bem um tom de irreverência com o risco real que esses personagens correm – a violência é sempre um elemento que parece vir de fora para ameaçá-los, trazendo consequências devastadoras. É como se eles, encastelados naquele espaço, afrontassem a sociedade pelo que são, com seus próprios corpos e existências.

Nada poderia ser uma tradução mais certeira e metafórica do momento de intolerância e desrespeito às minorias que se vive hoje no Brasil. Inferninho é um grito de resistência, soando com força uma resposta possível ao cenário atual: em tempos tão difíceis, é preciso apostar no amor e na rede de afetos que construímos ao nosso redor. Numa das cenas mais marcantes do longa, uma personagem se encontra perdida e desesperançada, e o próprio filme lhe oferece, via sons e imagens, um momento de delírio, alegria e apoteose. É uma maneira de dizer que tudo pode ficar bem.

Inferninho (Brasil, 2018)
Direção: Guto Parente e Pedro Diógenes
Roteiro: Guto Parente, Pedro Diógenes e Rafael Martins

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