Festival do Rio – parte VIII

Truman (Idem, Espanha/Argentina, 2015)
Dir: Cesc Gay

Truman é o tipo de comédia dramática que tem tudo para ser aquele filminho agridoce de fazer chorar e celebrar a vida, enquanto durar. Ora, tem Ricardo Darín morrendo de câncer sem querer continuar o tratamento por já se encontrar em estágio avançado da doença reincidente.

Poderia ser uma chuva de apelações, mas o roteiro do filme tem o cuidado de dimensionar muito bem os conflitos que surgem, todos muito críveis, traz personagens carismáticos, diálogos afiados e situações inusitadas. Dúvida crucial que ele tem de resolver é com quem deixar seu fiel amigo, o cão Truman. Impossível não gostar de um personagem nesse estado de saúde se preocupando com um cachorro.

O diretor é o catalão Cesc Gay que já havia demonstrado saber lidar bem com esse tipo de história de apelo popular e tratamento narrativo cuidadoso, vide o bom O que os Homens Falam, espécie de comédia romântica de viés masculino. O aclamado Darín, sucesso por onde passa, divide a cena com outro grande ator, o espanhol Javier Cámara (de filmes almodovarianos como Fale com Ela e Os Amantes Passageiros). É o encontro entre os dois, velhos amigos, que trazem à tona o momento de despedida do protagonista.

O filme está na linha tênue entre abusar do melodrama para emocionar diretamente o espectador com os encontros, despedidas e rememorações, e a sobriedade de tratar de tema tão duro. Escapa do desastre muitas vezes pelo carisma e pela sinceridade do texto. É um filme que angaria muito facilmente a simpatia do espectador, sem abusar de sua boa vontade, o que já é grande coisa.

Sangue do Meu Sangue
(Sangue del Mio Sangue, Itália/França/Suíça, 2015)
Dir: Marco Bellocchio

Existe algo de muito vigoroso nas narrativas que o mestre italiano Marco Bellocchio constrói e isso já vem de há muito. Sangue do Meu Sangue tem a mesma força criativa com uma história que promete alguns abalos, mirando na hipocrisia da Igreja Católica em relação aos desejos carnais e a noção de pecado. A trama se passa lá nos idos do século XVII quando um monge comete suicídio e, por conta disso, não pode ser enterrado com as bênçãos da Igreja, a menos que sua amante, a freira Benedetta, confesse seus pecados.

O filme acompanha os meandros do jogo religioso que abafa seus escândalos, observados de longe pelo irmão do monge que tenta tirar de Benedettta a confissão. Mas isso parece muito pouco para o cineasta. Ou antes, a denúncia das luxúrias na rotina religiosa pode soar, de alguma forma, já ultrapassada

Daí que Bellocchio sai de certa zona de conforto e joga seu filme num outro tempo, numa outra história. Trata-se de uma mudança brusca não só por encontrar personagens nos dias atuais, ambientado no mesmo casarão que outrora foi o mosteiro palco dos acontecimentos anteriores, mas também pelo tom. Há agora um clima um tanto sombrio, via personagem que se revela um velho vampiro que vive na casa, fora o tom jocoso do homem que quer comprar a propriedade.

Por vezes fica a impressão de que essa mudança é um mero capricho, truque de roteiro para “brincar” com as possibilidades narrativas daquela história, um desvio de atenção. Isso porque aquilo que está no cerne da questão para o filme é resgatado justo nos momentos finais. Ali Bellocchio acredita no desejo como força de vida (divina?) para o ser humano, para a vitalidade do corpo e da alma. O desejo salva.

 

O Clã (El Clan, Argentina/Espanha, 2015)
Dir: Pablo Trapero

O aclamado cineasta argentino Pablo Trapero toca agora numa ferida da história política argentina através do caso real da família Puccio, tradicional na high society daquele país. Todos os membros são impassíveis diante do segredo brutal que eles escondem: praticam sequestros de gente rica para ganhar resgate. Guillermo Francella interpreta, com uma força gélida de olhar e postura, o patriarca e cabeça das operações, tendo de lidar com os questionamentos dos filhos, em especial de Alejandro (Peter Lanzani).

O filme está o tempo todo do lado de dentro desse núcleo familiar, observando como se estrutura aquela rotina sádica (os raptados ficam presas em cômodos escondidos na própria casa da família), enquanto a vida de cada um segue. Não se trata de vilanizá-los, nem de compreendê-los, mas de não transformar o filme num mero denuncismo ou maniqueísmo uma vez que aqueles atos já são hediondos por si sós.

Ainda assim, Trapero consegue ironizar aquela situação, muito por conta de uma trilha sonora que remete a certa jovialidade rocker, que demarca uma época, mas também contrapõe certo bem estar social a práticas criminosas. O diretor continua seu belo trabalho de encenação, com câmera elegante e cada vez mais sutil, o que lhe valeu um merecido prêmio de melhor diretor no último Festival de Veneza. Talvez o porém fique por conta de uma montagem que antecipa certas situações e tira a força do clímax do filme.

O Clã ainda faz lembrar da grande qualidade do cinema argentino atual em remexer e olhar para sua História recente, para as mazelas sociais e políticas de há relativamente pouco tempo, de maneira corajosa, crítica, revisional. Vale lembrar que a então Argentina acabava de sair de um regime ditatorial. Talvez por isso, o filme seja tão caro aos próprios argentinos, o que justifica o imenso sucesso de público que tem feito por lá. E merecido.

 

À Sombra de uma Mulher (L’Ombre des Femmes, França/Suíça, 2015)
Dir: Philippe Garrel

 

Philippe Garrel continua fazendo filmes como quem vive numa França de outrora, romantizada, dos anos 1950 ou 60, também melancólica, revisitada em preto-e-branco granulado. O filme parece uma continuação de O Ciúme, último trabalho do diretor, com o mesmo tom, ritmo amansado, mas colocando seus personagens em certos turbilhões amorosos.

 

Aqui, Paris é o palco das dores de amor de um casal que vive bem um relacionamento de proximidade, trabalham em união nos documentários que ele dirige, ainda que precisem de outros subempregos. A história ganha cores dramáticas quando ele começa a ter um caso extraconjulgal que lhe agrada muito, ainda que continue a adorar a vida com a esposa.

O filme segue a estrutura das reviravoltas, com direto a descobertas e trocas de farpas, ainda que a questão pareça ser outra. No início do filme, a mulher chega a revelar como lhe agrada uma vida de entrega ao marido, à sombra dele. Mas o título do filme sugere o contrário, e veremos como, aos poucos, esse homem sucumbe, exige muito da outra parte sem querer ceder e lida mal com as atitudes dessa mulher, sem conseguir acompanhar sua maturidade emocional. No fundo, a mensagem é muito clara aqui: mulher é maior que homem, apesar do amor ser maior que ambos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Arquivos