Festival do Rio – parte V

Academia das Musas (La Academia de las Musas, Espanha, 2015)
Dir: José Luis Guerín

Poderia ser o filme mais pedante, a profusão de conversas mais chata e interminável possível, mas é incrível como José Luís Guerín consegue transformar um falatório acadêmico em algo tão vivaz e manter o interesse. Raffaele Pinto é um professor de filologia obcecado pelo tema das musas clássicas que inspiravam os grandes artistas e poetas. Sua tese recente é de que seja possível e essencial nos dias correntes ensinar as mulheres, as jovens sobretudo, a serem musas.

O filme se dispõe a fazer esse homem erudito discutir e trocar ideias com seus alunos e outras pessoas – tal como sua esposa, por exemplo, o que logo se transforma numa deliciosa DR erudita. Temas como amor, o belo, desejos, sedução, princípios do que seja o masculino e o feminino, enfim, questões que compõem o campo da arte e da inspiração, surgem em profusão num filme que muitas vezes nos questiona sobre sua natureza ficcional ou documental.

Trata-se de um filme essencialmente dialógico, calcado muito na palavra e nos planos que privilegiam os rostos em paralelo dos personagens que falam e confrontam-se em suas ideias. Engraçado como A Academia das Musas pode ser visto como um filme tão diferente de Na Cidade de Sylvia, a obra mais festejada do cineasta, ao mesmo tempo em que estabelece com ele grande diálogo. Qual a melhor representação contemporânea da musa senão a mulher que o personagem obcecado persegue durante o filme?

Mas aqui Guerín consegue fazer desse falatório todo um filme delicioso que não deixa de ser, ainda, sobre as relações amorosas ou, antes, sobre como enxergar o outro, a beleza do outro. Há uma precisão na forma como essas conversas são ordenadas na montagem com o passar dos dias, sem nos deixar se perder no emaranhado discursivo, mas também sem fazer dele um peso teorizado. Um filme sem igual.

Francofonia (Idem, França/Alemanha/Holanda, 2015)
Dir: Aleksandr Sokurov


Se não existe talvez nesse novo filme de Sokurov um ponto central com o qual podemos dizer “esse filme é sobre isso”, ao menos podemos ver que o celebrado
diretor russo faz de Francofonia um ato de celebração e de amor pela França, pela sua cultura artística, mas também um foco de grande interesse pelos meandros de sua História.

O Museu do Louvre acaba sendo o eixo pelo qual essas vertentes convergem, mais exatamente no período de ocupação da França pelas tropas do eixo durante a II Guerra Mundial. É menos um filme sobre a arte e mais sobre como um espaço de preservação e solidificação da cultura mundial resiste em tempos difíceis.

Sokurov mistura muitos registros aqui, uma fragilidade do filme em nunca se apegar com afinco a um deles, tateando por muito tempo um a solidez narrativa. Pode ser visto como um ensaio poético-político, misturando imagens de arquivo, reconstruções ficcionais e ainda invoca a persona de um Napoleão Bonaparte bonachão para passear pelos corredores e salões do museu.

Mas talvez a grande força do filme é fazer brotar dessa história – que tem muito de didatismo para situar o espectador no contexto histórico da época – a importância de um elemento central para continuidade e resistência do museu diante do invasor, a saber o então diretor do Louvre, Jacques Jaujard. Diante do peso da História e da Arte, surge essa figura humana, em contraponto a outro sujeito, o conde Wolff-Metternich, general da ocupação nazista em Paris. Mas é Jaujard quem Sokurov escolhe para centralizar a simbologia da resistência: o homem e sua história pessoal contra a adversidade da História maior, eis o grande embate.

The Lobster (Idem, Irlanda/Reino Unido/França/Grécia/ Holanda, 2015)
Dir: Yorgos Lanthimos


O diretor grego Yorgos Lanthimos, mais conhecido pelo filme de choque Dente Canino, dirigiu seu primeiro filme em língua inglesa, sem deixar de lado o traço do bizarro e da estranheza de seus trabalhos anteriores – em diálogo muito frutífero com certo cinema feito na Grécia da crise atual.

Pessoas são “internadas” num resort de luxo para que possam se apaixonar por outras e formar um casal, de preferência feliz. Caso contrário, elas serão transformadas em um animal de sua própria escolha. The Lobster é mais um mergulho num mundo de tons fabulares, ainda que o tratamento seja naturalista. Todos parecem estar de bem com essa formalidade, apesar de correrem contra o tempo para salvarem a pele.

Lanthimos investe não só nessa fábula de estranhezas, como também injeta boas doses de humor negro na história – a piada com o filme Conta Comigo, por exemplo, é impagável. Aos poucos o diretor, que também assina o roteiro, amplia esse universo que é um prato cheio para a circulação de personagens estranhos que se comportam de modo esquisito. É quando o filme passa a girar em torno das possibilidades de estranheza que aquele universo possibilita – ainda que seja dinâmico, apresentando novos personagens, saindo
de uma zona de conforto – até chegar num final que realmente tem algo a dizer.

Existe no filme uma ideia clara de ridicularização da instituição do matrimônio ou dos relacionamentos amorosos perfeitos como sinônimos de felicidade que muitos almejam. The Lobster revela aí uma espécie de descrença na união conjugal entre homem e mulher, no simulacro que pode ser essa união. Enquanto isso, o amor estaria acima disso tudo, num gesto de sacrifício que fala mais sobre o sentimento das pessoas – e que só seria possível ao quebrar todas as convenções. O amor como ato revolucionário, em muitos sentidos. É uma ideia muito forte, mas que se dilui no mar de bizarrices que é esse filme.

Os Irmãos Lobo (The Wolfpack, EUA, 2015)
Dir: Crystal Moselle

Certas realidades são bastante curiosas pelo fato de parecerem impensáveis – e por isso mesmo fascinantes quando adentradas e comprovadas. Os Irmãos Lobo é um documentário que exemplifica muito bem essa ideia ao revelar a rotina de vida dos sete irmãos da família Angulo que foram educados pelos próprios pais e nunca saíram de casa, permaneceram ali trancados por 14 anos.

Eles vivem num prédio no bairro de Manhattan e seu maior contato com o mundo externo são através de filmes. São tão fascinados por alguns deles, e suas únicas percepções do mundo exterior, que passam grande parte do tempo reencenando e gravando amadoramente clássicos do cinema americano, desde Cães de Aluguel até Os Bons Companheiros. Os Irmãos Lobo, para além da surpreendente história, resgata esse sentido de reinvenção da cinefilia, tem momentos muito curiosos e engraçados, mas vale muito por tentar entender a mentalidade daquelas pessoas, como esse enclausuramento e a possibilidade de quebrá-lo mexem com aquele núcleo familiar.

Tem a mãe e o pai, que defendem com afinco, e os filhos espremidos entre o carinho e a limitação que sentem profundamente. Chrystal Moselle, em seu primeiro filme como diretora, consegue ouvir e extrair uma melancolia evidente daquelas pessoas, sem julgamentos ou comiseração. Em certo ponto, o filme deixa de apresentar novidades na rotina daquela família, mas é um estudo incrível sobre as demandas de espaço e contato humano que uma pessoa exige.

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