Olhar de Cinema: Diz a Ela que me Viu Chorar

A Mostra Competitiva no Olhar de Cinema começou com um filme forte, que lança sobre si uma série de questões de ordem moral, muito arriscado em sua própria concepção basilar. Diz a Ela que me Viu Chorar, de Maíra Bühler, é um retrato cru de pessoas em situação de vulnerabilidade, o que coloca em xeque, de antemão, o gesto mesmo de filmá-las e de exibir suas fragilidades.

O filme se encerra todo dentro de um centro de “redução de danos” para viciados em crack em São Paulo. Trata-se de um antigo edifício usado como espaço de acolhimento para essas pessoas, minimamente tratadas e cuidadas, o que não impedem surtos ou fluxos de saída e entrada das pessoas. Na verdade, não estão muito claros os parâmetros e regras que regem aquele espaço – o filme é muito pouco informativo sobre o que quer que seja.

Ali, a diretora encontra uma variedade de indivíduos que vivem suas pequenas agruras cotidianas de convivência, seus grandes dilemas de vida, a tentativa de reconstruir uma história pessoal ou de sobreviver ao dia a dia da luta contra o vício. Não há personagens centrais, não há romantização do humanismo e da caridade, muito menos um peso moralizante sobre aqueles indivíduos. A opção do filme é pelo cinema direto, câmera em observação, nada de entrevistas ou contextualização, nenhum voz “oficial” (daqueles que administram e cuidam do espaço ou dos que tratam e lidam diretamente com os “internos”) que legitime um discurso profissional-professoral.

O interesse do filme é por pessoas, pelos seus dramas particulares, ainda que registrado em modo de fragmentação. Não existem grandes histórias, com começo meio e fim; antes de mais nada, são figuras humanas registradas em pedaços de convívio que a câmera encontra quase que por acaso, não sem antes construir toda uma atmosfera de proximidade e intimismo. Ninguém precisa explicar que a equipe do filme integrou-se àquele local e ganhou a confianças daquelas pessoas pelo simples fato da câmera ser capaz de captar situações muito potentes, tanto íntimos quanto brutais.

Todas essas opções narrativas fazem o filme se descortinar por uma série de momentos marcantes, dos singelos até os mais explosivos, que tensionam muito do que significa viver sob as garras do vício. Apesar de não especificar questões de ordem social, o filme não deixa de antevê-las: aqueles são, na sua maioria, corpos negros, vindos de famílias de baixa renda, sem suporte familiar e amparo do Estado, perfil que se repete em muitos lugares. Essas pessoas são expostas no filme em suas vicissitudes, por vezes revelam seu lado mais violento e descontrolado – há brigas ao telefone e confrontos físicos também –, e nunca saberemos sob qual nível de consciência elas estão agindo em cada momento – o filme abre com uma cena de uma das moradoras fumando um “cachimbo” de droga.

Por isso mesmo a obra se coloca, e coloca o espectador, num lugar de desconforto por aquilo que mostra e, em primeiro momento, pode afastar o público, não tanto pela crueza do que revela – algo que já vimos tanto em outros filmes, mesmo nos de ficção – mas mais pelo tanto da exploração da imagem que se pratica ali; importante frisar que há pouca informação sobre estes personagens: não sabemos qual sua atual situação, de onde vieram, se têm família e amparo, quanto tempo estão ali; numa briga ou numa conversa exasperada ao telefone, pouco sabemos sobre as circunstâncias que envolvem aquela situação, o que acentua ainda mais o risco da exposição de pessoas já em estado de vulnerabilidade social. Portanto, uma pergunta não deixa de permear nosso imaginário: até que ponto eu deveria estar testemunhando tais imagens? Qual o limite do registro dentro de um contexto tão delicado e de difícil tomada de posição?

Uma resposta para isso – talvez a resposta possível, refletida pouco depois de visto o filme – reside na empatia. Diz a Ela que me Viu Chorar se arrisca por esse labirinto de complexidades morais, mas promove um exercício de alteridade inusitado. Alcançar tal resultado não é fácil porque a circunstância em que essas pessoas se encontram, geralmente, provoca o oposto: a recusa do olhar, o afastamento.

O título do filme, por exemplo, provém do verso de uma música que um dos moradores canta ao acaso; desdentado, aparentemente sozinho num quarto, ele entoa a canção a plenos pulmões, olhar vago de quem canta e lembra algo – ou apenas encena para a câmera? Não sabemos, mas são desses raros momentos que o filme produz aproximação.

Diz a Ela que me Viu Chorar (Brasil, 2019)
Direção: Maíra Bühler
Roteiro: Maíra Bühler

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