Da linguagem e das paixões

Romance (Idem, Brasil, 2008)
Dir: Guel Arraes


Romance é um exercício de linguagem dos mais interessantes. É quando se mistura teatro e TV para discutir a validade artística de ambos, e onde o amor ganha status de sentimento que leva ao sofrimento. Uma pena que tenha sido tão pouco comentado e visto, pois parece ter sido um dos grandes filmes nacionais de 2008.

O roteiro primoroso e ágil, assinado por Guel Arraes e Jorge Furtado, parece tomar emprestado o talento das passagens de Tristão e Isolda (texto romântico do longínquo século XII), constantemente citadas no filme. Isso porque os atores teatrais Pedro (Wagner Moura) e Ana (Letícia Sabatella) estão justamente apresentando uma montagem do clássico. As coisas complicam quando ela é chamada para protagonizar uma novela na TV.

Daí já surge o conflito do filme. Pedro é um idealista e vive para fazer e se dedicar ao teatro enquanto Ana possui a vontade de experimentar e considera possível se dedicar tanto ao teatro quanto à TV, e ser feliz assim. Pode parecer fácil criticar a linguagem televisiva e valorizar artisticamente o teatro, mas o roteiro deixa claro as potencialidades de cada um, e também os desafios de fazer algo com valor em ambos os formatos. Existem não só críticas à banalidade da TV quanto ao elitismo do teatro.

Arraes possui um ótimo domínio de direção, criando os planos com simplicidade como sempre fez, num meio termo entre as linguagens televisiva e cinematográfica. Ele filma bem o teatro, que nunca parece teatro filmado. A narrativa tem ritmo e é bastante auxiliada pelas reviravoltas do roteiro, todo bem amarrado.

Como dizem os próprios personagens, o grande legado de Tristão e Isolda é mostrar a paixão como um sentimento doloroso e de como o “sofrer de amor” pode ser uma coisa desejável. Os personagens passarão por essa provação, não como uma escolha, mas inevitavelmente. Interessante como nós, espectadores, sentimos prazer em ver o sofrimento amoroso na tela, talvez como reflexo daquilo que já vivemos algum dia ou por sabermos ser bastante fácil encontrar esses percalços pelo caminho.

Interessante também como o filme mostra o processo de construção tanto do teatro (as pausas no texto, as mudanças de luz) como da própria linguagem visual (as possibilidade e importância da montagem, peça-chave do final do filme, são muito bem exploradas, por exemplo).

Além disso, há um trabalho de atores excepcional. Andréa Beltrão vai da amiga à trapaceira, uma das mais complexas do filme; José Wilker surge tedioso e impertinente como o produtor de TV; Vladimir Brichta talvez seja o menos talentoso, mas segura bem seu personagem; por fim, Marco Nanini, com pouco tempo em tela, surge explosivo como pouco se viu.

Mas nada é mais bonito e intenso que a força conferida pelos protagonistas aos seus personagens, cheios de contradições, e fascinantes por isso mesmo. Sabatella e Moura defendem com muita força seus personagens, sustentam com muita vontade as paixões de cada um, principalmente quando dizem respeito a eles próprios.

PS: existem grandes semelhanças entre esse filme e a série televisiva Som e Fúria (principalmente na construção da linguagem teatral e sua validade de resistência artística), dirigida por Fernando Meirelles recentemente para a TV Globo. Confesso que gosto mais do filme de Arraes.

4 thoughts on “Da linguagem e das paixões

  1. Rafael, assisti este filme em DVD e não gostei muito. É inegável que ele é bem-sucedido enquanto ao seu exercício de linguagem, mas não gostei de Wagner Moura e Letícia Sabatella. Ou melhor, Pedro e Ana, pois os atores sempre são competentes. Acho o romance deles tão mal construído que acabei me entusiasmando mais em acompanhar os personagens secundários. Sou fã da Andréa Beltrão e amei a personagem dela, muito divertida e interessante.

  2. Que coincidência, topei com esse filme sábado na locadora e comentei com um amigo o quanto tinha gostado dele (vi no cinema) e como quero rever (já está no meu HD há alguns dias).

    Só que esqueci de olhar na contracapa do dvd se o filme tá mesmo em fullscreen, como eu li na internet (o arquivo que eu baixei está..), o que cá entre nós é um absurdo e ainda me choca;o Guel Arraes não liga para essas coisas?Pelo que me consta, o filme foi rodado (bom, pelo menos foi exibido…) em widescreen.

    Sim, na época que eu vi só tive problemas com a atuação da Sabatella,não "comprei" a performance dela, apesar de gostar dela como atriz. O que mais me marcou,mesmo, foi como justamente o romance na tela não segue clichês, e as dúvidas do Wagner Moura e a personagem da Andrea Beltrão foram uma das melhores coisas do filme.

    É uma pena mesmo que um filme tão acessível e criativo como Romance não tenha sido um estouro, enqto porcarias como Divâ tenham "bombado",rs. Linda fotografia a desse filme.

    Já viu "Adventureland"?Dos últimos inéditos que eu vi, foi o que mais me marcou, muito, muito bom.

  3. Que pena Alex, acho que o Guel Arraes foi muito feliz nesse projeto, além do filme ter um tom bastante popular, e ao mesmo tempo muito bem cuidado esteticamente. Tá certo que os personagens coadjuvantes são mesmo muito interessantes, mas os questionamentos dos protagonistas acerca do amor e da arte são muito pertinentes.

    João Daniel, para escrever também cheguei a rever o filme justamente porque gostei muito dele. E mesmo tendo visto no PC, lembro que foi em widescreen. Enfim, o trabalho do Arraes é bastante popular e esteticamente bem competente, tipo de coisa que ele e o Jorge Furtado fazem muito bem. Por mais que eu goste dos protagonistas e seus questionamentos, os personagens secundários são mesmo ótimos, com destaque para a Beltrão (que vem se revelando uma grande atriz de cinema) e para o Marco Nanini, surpreendentemente explosivo. E não, não vi Adventureland ainda. Sabe que não sou muito fã dessa nova onda da comédia norte-americana? Mas devo conferir logo.

    Bruno, se gosta mesmo do Arraes e seu cinema popularesco com qualidade tenho certeza de que vai gostar desse filme aqui. Não sei como você não assitiu ainda. Vá e veja!

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