Bacurau

“Quem nasce em Bacurau é o quê?” / “É gente”, responde o menino desaforado. Sobre as muitas definições que cabem ao filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dorneles, podemos escolher a que diz que Bacurau é um filme sobre gente desaforada. Para o povo de Bacurau, desaforo é uma escolha de vida, um modo de estar no mundo. Ainda mais quando este mundo, o seu mundo, anda em perigo. Aí é que o desaforo passa a ser uma arma – ainda que seja preciso pegar em outras mais adiante. O desaforo e seus desdobramentos são resposta para um enfrentamento que é anterior à ameaça física, ao desmando do extermínio; o desaforo é, antes de tudo, estratégia de autoproteção.

Bacurau é mais um petardo de Mendonça Filho, agora ao lado de Dorneles, irmanados na tarefa de revisar e complexificar a ideia de que o sertanejo é, antes de tudo, um forte. Ou, antes de tudo, gente simples, como quer um tipo de representação bem preguiçosa desse povo dessa parte do Brasil. A bandeira que o próprio filme e seus realizadores carregam passam longe de uma mera valorização dos nordestinos como um favor que lhes é feito, não só porque essa gente sobrevive diante das mazelas naturais e sociais que lhes são impostas, como também resiste aos desmandos dos que estão acima na escala hierárquica de poder.

Para tanto, os diretores arquitetam toda uma estrutura narrativa e um programa de tensionamentos que começam desde a primeira cena do filme. Teresa (Bárbara Colen) está chegando à pequena cidade de Bacurau e é acordada pelo som de caixões atropelados pelo caminhão-pipa onde ela viaja – o som já pulsa forte nessa primeira cena, algo que se repetirá ao longo da projeção. O grupo de personagens a quem seremos apresentados, cada qual com suas idiossincrasias, formam um apanhado muito rico de gente que, no fim das contas, luta pelo mesmo objetivo: viver. As ameaças que recaem sobre a pequena comunidade não demoram a aparecer, e elas provêm tanto dos poderes instituídos (o prefeito e sua postura oportunista e claramente negligente) como daqueles mais misteriosos, a saber uma gangue de matadores cujos planos se assemelham muito a um grupo de caçadores num safári.

Apesar das intenções escusas que há por trás das ações desses grupos, Bacurau é um filme muito objetivo, muito direto na sua proposição de pensar um sentido de resistência. Não há analogias, não há uma leitura maior de Brasil. O que é, é. O povo de Bacurau corre risco de vida, Bacurau está sendo literalmente apagada do mapa, as pessoas da comunidade estão sendo mortas; a ameaça é real, desde o início ela paira sobre os personagens. O filme logo coloca as cartas na mesa e as pessoas do local apenas respondem a elas. Há, no entanto, a denúncia clara de um projeto político em curso que visa a destruição das minorias (sociais e políticas) – e talvez resida aí um das poucas analogias que o filme lança sobre uma realidade latente em termos de Brasil: os “indesejáveis” precisam ser rejeitados e exterminados.

É muito mais complexo do que as ideias muito difundidas por aí de que Bacurau é um retrato do Brasil de hoje (mais uma vez a alegoria como forma de explicar tudo), uma obviedade e também uma simplificação conceitual. Primeiro porque um filme que se passa no interior de Pernambuco – mais precisamente a Oeste de Pernambuco – claramente faz parte do Brasil; e segundo que alardear que o filme é um retrato cru e revelador do Brasil atual também conserva certa preguiça porque qualquer filme é reflexo de sua localidade de então, de seu tempo, atravessado pelos anseios e subjetividades dos indivíduos que o produzem – somos sujeitos históricos do hoje, e isso não é exclusividade em Bacurau.

Se o filme se insere numa representação geog犀利士
ráfica muito bem localizada dentro de um país de proporções continentais, talvez seja mais rico pensar que Bacurau tenta explorar as cicatrizes sociais da formação e construção de um povo muito desafeito a sua própria História e que desconhece a multiplicidade de vozes que o compõe – e isso faz da existência do museu de Bacurau um ato de heroísmo. Os motoqueiros paulistas que chegam à comunidade são brasileiros assim como os moradores locais, mas nunca se reconhecem neles – pensam, inclusive, estar mais próximos dos norte-americanos, conceito que será ironicamente rechaçado em cena deliciosa. Tem muito vira-lata no Brasil.

O grupo de vilões americanos também revelará suas garras, e junto com elas ideais muito doentios de uma sociedade encantada pela violência. O filme, aliás, promove um estranhamento curioso quando nos joga no microcosmo muito particular dessa confraria do mal e seu perverso jogo de matança e pontuação por cada cabeça abatida. Há ali um desejo íntimo de morte e sede de sangue que reflete certo imaginário de uma América belicista e armamentista, agora espelhada no atual governo Trump.

Certamente em algumas dessas situações o filme sinta a necessidade de ser mais expositivo, de mandar alguns recados sobre um pensamento ignóbil sustentado pela força da violência (como o caso do marido que, depois de ser largado pela esposa, passou a carregar armas com o intuito de um dia matá-la, ou de atirar em pessoas num shopping center). São momentos em que o filme mais se enfraquece porque precisa mastigar um discurso revelador de certo comportamento do americano médio, e justo por isso não foge do caricato – a cena de sexo no matagal já cumpre muito bem a tarefa de ilustrar mentalidades doentias. E ainda faz com que a terça parte final do filme se alongue demais nessa construção vilanesca, mesmo que com algumas nuances.

Ainda assim, tais momentos não deixam de compor um corpo estranho – o objeto não identificado da música de Caetano/Gal – que faz questão de se mostrar assim mesmo: deslocado, fora do lugar, prenunciando algo da ordem do cruel e do bizarro. Mas a resposta do povo de Bacurau também carrega sua dose de insanidade – que os digam os efeitos do psicotrópico. Bacurau, na sua aproximação com o cinema de gênero, a despeito de acenar para uma tradição do western e do horror social, identifica-se como uma distopia do possível: passa-se num futuro próximo, mas é fácil reconhecer as garras de um pensamento primitivo de extermínio do “diferente” que vigora por aí nas mentes doentias. A nós, restam as armas.

Bacurau (Brasil/França, 2019)
Direção: Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho
Roteiro: Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Arquivos