Ana. Sem Título

Resistência feminina*

Nenhum cineasta no Brasil discutiu a resistência à Ditadura Militar com tanta seriedade, afinco e longevidade, espalhado em vários filmes, como Lúcia Murat. O tema é uma constante na obra da cineasta brasileira porque ela viveu os anos de chumbo participando da luta armada, foi presa e torturada, e sobreviveu para contar a sua e muitas outras histórias de quem esteve do lado da militância aguerrida.

Ana. Sem Título (escrito assim mesmo, fazendo referência às peças de arte exibidas em museus e galerias e que não são tituladas pelos seus autores) é mais um passo no sólido painel de histórias e memórias que a cineasta pretende que não sejam esquecidas. Especialmente a de tantas mulheres que estiveram envolvidas nos movimentos de oposição aos regimes ditatoriais, seja através do engajamento político direto, seja através do fazer artístico.

O filme é uma espécie de diário de uma busca, um road movie tendo como figura central uma artista plástica brasileira que viveu entre vários países da América Latina, confrontando os poderes com a sua arte, mas que desapareceu depois de um tempo e de quem pouco se sabe. Nem mesmo seu sobrenome é conhecido, ela apenas assina a suas obras como Ana, bem como assim ela é chamada por suas companheiras.

A própria Lúcia Murat é personagem que surge frente às câmeras nessa jornada em busca de pistas sobre a vida de Ana, mas ela não está sozinha em tela. A atriz Stella Rabello, obcecada por essa personagem misteriosa e fascinante, se junta à equipe para seguir as poucas direções que levem à artista brasileira.

Elas encontram pelo caminho uma série de outras mulheres envolvidas no mesmo período histórico e na mesma vivência política e artística, trajetória que marca os trabalhos de Antonia Ariz, Maria Izquierdo, Kati Horna, Luz Donoso. Todas elas artistas plásticas reconhecidas não apenas pelo seu talento, mas por insistir em fazer de sua arte um grito contra a tirania, não sem sofrer as consequências de tal atitude.

A trama do filme é guiada pelas várias cartas que Ana trocou com diversas artistas latino-americanas entre as décadas de 1970 e 1980. Ela também saiu do Brasil e circulou por diversos países, da Argentina ao México, passando pelo Chile e por Cuba, vivendo intensamente os conflitos históricos que tanto aproximam a vida política desses países.

Duas gerações

É essa mesma rota que o filme busca traçar na tentativa de encontrar mais informações sobre Ana. A cada parada, um país novo, detalhes distintos, mas uma mesma história de opressão, violência contra os insurgentes e a urgente necessidade de enfrentar os poderes vigentes. Importante notar que o filme acaba aproximando duas gerações diferentes de mulheres (Lúcia e Stella) imbuídas do mesmo intuito.

“Resolvi fazer desse trabalho um filme porque sabia que nesta busca ia encontrar minha geração”, afirma Murat em determinado momento do longa – a obra é baseada na peça de teatro Há Mais Futuro que Passado, que busca discutir o lugar da mulher latino-americana na história da arte.

Ao trazer a proposta para o cinema, Lúcia Murat acrescenta a suas inquietações políticas e a vontade de colocar em questão a resistência feminina aos governos militares. Além disso, utiliza o artifício da hibridização entre ficção e documentário que já estava presente desde a sua obra-prima seminal, o longa Que Bom te Ver Viva (1989).

Isso faz de Ana. Sem Título um filme que interroga a História a partir de um gesto narrativo que intercala tempos históricos distintos para pensar em como a memória e as ações do passado nos chegam aos dias correntes. Mas o filme questiona também os apagamentos que sucessivamente foram impostos ao povo brasileiro.

Isso porque a trajetória de Ana, a artista que se confunde com a militante, pode fazer parte da ficção ou da realidade – assim como tantas outras histórias que foram apagadas, enterradas e queimadas no curso do tempo, especialmente de um país como o Brasil que enfrenta uma dificuldade enorme em encarar os horrores desse passado, muito por conta dos arquivos oficiais estarem inacessíveis, quando não criminosamente destruídos.

Ainda assim, mesmo que o jogo narrativo proposto pelo filme se mostre muito mais pendente à ficção (sem nunca esconder essa sua intenção criativa), a realidade latino-americana está lá, latente e gritante, representada por essas mulheres que não fugiram ao chamado da resistência. Ana não tem sobrenome, ela quase não teria história se não fosse o gesto da busca e da inquietação das realizadoras. Mulher do mundo, negra e lésbica, ela é um retrato de uma geração que não pode ser esquecida.

Ana. Sem Título (Idem, Brasil, 2020)
Direção: Lúcia Murat
Roteiro: Lúcia Murat e Tatiana Salem Levy

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 07/08/2021)

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