A Divisão / Entrevista com Vicente Amorim

Cinema de ação à brasileira*

É inegável o impacto que Tropa de Elite deixou no cinema brasileiro, em especial no cinema de gênero. A despeito das polêmicas em torno do filme e das declarações de seu realizador, os filmes de José Padilha apontaram para a possibilidade de se fazer cinema de ação e thrillers policiais em âmbito nacional. A Divisão, de Vicente Amorim, que estreou esta semana nos cinemas, segue a mesma trilha e conta com uma produção eficiente e engajada em oferecer uma trama condizente com a realidade nacional.

O filme se passa no Rio de Janeiro de fins da década de 1990. Uma onda de sequestros toma conta da cidade, o que coloca a polícia em confronto direto com os sequestradores.  A maioria deles é proveniente dos morros cariocas, chefes do tráfico que encontram na extorsão de famílias abastadas mais uma fonte de lucro através do medo e da ameaça.

A vítima da vez é a filha do deputado Venâncio Couto (Dalton Vigh), que busca sua candidatura a governador do Rio. Entra em cena a equipe da Divisão Antissequestro (DAAS) da polícia do Rio de Janeiro, chefiada pelo delegado Benício (Marcos Palmeiras). Diante do caso com o figurão da política local, ele coloca à frente da investigação o policial Santiago (Erom Cordeiro), já na mira da corregedoria da polícia por envolvimento em negócios escusos, junto com Mendonça (Silvio Guindane), policial sanguinário que resolve as coisas usando da intimidação e violência.

Em conversa exclusiva com o Jornal A Tarde, o diretor Vicente Amorim falou das dificuldades de se fazer cinema de ação no Brasil: “É um grande desafio fazer um filme dessa escala. É caro, é trabalhoso, complicado e requer uma expertise técnica que pouca gente tem. Mas estamos começando a vencer essas barreiras; sempre houve diretores interessados em contar esse tipo de história, o que faltava era investimento e aposta”.

Amorim percebe uma mudança nesse cenário a partir de experiências recentes, como as séries Força Tarefa e Carcereiros. “Do ponto de vista de sucesso de público, o Tropa é uma grande referência, mas enquanto marco autoral e de linguagem, a grande virada é Cidade de Deus. Tudo mudou depois dali. A gente viu que dava para fazer cinema policial de ação sobre as questões da violência urbana brasileira, com qualidade e possibilidade de comunicação maior com o público”, pontua o cineasta.

Sem heróis

Se em Tropa de Elite surgiu uma ideia (para muitos equivocada) de certo heroísmo encarnado pela figura imponente do Capitão Nascimento, em A Divisão não há espaço para heróis e grandes defensores.

O filme acompanha uma trama que envolve diversos atores sociais e agentes públicos, desde os policiais, até ministros, secretários de segurança e membros da classe política, cada um deles com sua moral torta. Mesmo os protagonistas do filme, que encabeçam a força-tarefa antissequestro, são vistos, desde o início, como personagens corruptíveis e à mercê da maquinaria política que envolve o trabalho da polícia.

“Não dá para falar de segurança pública no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, e você querer dividir o assunto entre heróis e bandidos. De alguma forma, você tem só vilões e alguns deles são anti-heróis”, observa o diretor.

Amorim conta que havia um trunfo dentre os roteiristas (o filme é escrito por um conjunto de profissionais, inclusive com a participação dele). Porém, um deles se destacava: José Luis Magalhães, que possui experiência de campo dentro da polícia do Rio de Janeiro.

“Ele é o Santiago da vida real, o personagem é baseado na vida dele. O filme é uma ficção baseada em fatos reais. A história desse personagem, as angústias e contradições que ele vive no filme, são baseadas nas mesmas sensações que o roteirista viveu. Até mesmo o desenho das cenas de ação foi baseado na experiência do Magalhães”, confidencia o diretor.

Se o filme assume o ponto de vista da polícia, é perceptível como muitas das articulações que se davam ali nos bastidores do poder eram devedoras do envolvimento desse roteirista na equipe. E sua participação extrapolava o lado técnico e o puro senso de realismo da coisa.

“Na construção do roteiro, a gente tinha acesso não só a fatos, mas também a sentimentos, maneirismos, falas e expressões que expressavam uma realidade. E isso é fundamental para dar a dimensão humana que esse filme tem”, acrescenta Amorim.

Amplitude

A Divisão trata-se de uma variação da minissérie de mesmo nome exibida na plataforma de streaming da Rede Globo, a Globoplay. A primeira temporada foi disponibilizada em meados de 2019, seguindo o mesmo núcleo dramático do filme (a equipe de antissequestro da polícia), também dirigida por Amorim. Mas o diretor alerta que não se trata de uma continuidade.

O filme foi pensado em conjunção com a série, tanto que foram gravadas juntas, como forma de otimizar a produção. Por uma questão de estratégia, a série acabou sendo lançada antes para o público.

“Evidentemente, o recorte dos dois produtos é diferente. O filme não é o resumo da série, nem a série é o filme esticado. A ideia é que o filme se sustente independentemente”, conta o diretor. Além disso, a segunda temporada da série já está em pós-produção e tem previsão de estreia na plataforma da Globo para o segundo semestre de 2020.

A Divisão, em sua versão filme, pode não avançar nas discussões sobre a corrupção policial (nada que já não tenhamos visto antes), mas funciona como um produto eficiente em meio à produção desse gênero no Brasil – as cenas de ação são mesmo bem realizadas e resolvidas dentro da trama.

O filme não tem medo de expor uma violência explícita, muito crua e corajosa na sua proposta, ainda que pouco dimensionada pelo roteiro (especialmente porque não dá espaço para o desenvolvimento dos demais personagens que estão do outro lado da situação). Ainda assim, mostra que é possível fazer cinema de gênero no país, refletindo uma realidade que nos é reconhecível – e incômoda.

A Divisão (Brasil, 2020)
Direção: Vicente Amorim
Roteiro: Vicente Amorim, José Luiz Magalhães, Aurélio Aragão, Gustavo Bragança, Rafael Spínola, Fernando Toste e Erik de Castro

*Publicado originalmente no Jornal A Tarde (edição de 26/01/2020)

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